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Anatomia da condução ilegal em Moçambique

Anatomia da condução ilegal em Moçambique

Num país em que os problemas relacionados com a condução são apenas uma mera estatística, conduzir sem habilitação tem um rosto. Os condutores moçambicanos não habilitados colocam a chave na ignição, pisam no acelerador e conquistam a legalidade no asfalto.

Até porque não há punição que os amedronte quando se tem, na mão esquerda, a facilidade de se obter carta de condução ou um justificativo falso e, na direita, um agente da Polícia de Trânsito como parente ou amigo. Eis um fenómeno social na sua forma suprema de prepotência nas estradas das principais cidades moçambicanas.

Poucos minutos passam da hora 19. O barulho de música oriundo de diversas casas de pasto chega aos ouvidos de forma dissonante. Este é o cenário: ruas movimentadas; automóveis, com o som alto, passam zunindo pelas artérias da cidade; e dezenas de pessoas, sem referências, arrastam-se pelos passeios, e outras, sentadas nas barracas, procuram o prazer no álcool para dar sentido à vida. A agitação é própria de uma noite quente de sexta-feira de um fim-de-semana prolongado.

Ligeiro como um raio, José*, de 26 anos de idade, deixa a sua casa no bairro da Memória, arredores da cidade de Nampula, e acelera pelas ruas pouco iluminadas da urbe a sua viatura de marca Honda Civic.

A bordo do veículo, ele desliza tranquilo e imperturbável a 80 quilómetros por hora (refira-se que dentro da cidade é proibido exceder a velocidade de 40 km/h) e só começa a abrandar a aproximadamente 10 metros da rotunda do aeroporto.

Lança o olhar para os dois lados da estrada, onde frequentemente a Polícia de Trânsito se instala para fiscalizar os carros que entram e/ou saem da zona de cimento de Nampula, e não avista nenhum agente. Curva à esquerda, pisa no acelerador e sai “voando” pela Avenida do Trabalho. O destino é um bar no centro da cidade para, mais tarde, desaguar numa discoteca.

A preocupação de José em averiguar a provável presença da Polícia de Trânsito naquele local não tinha nada a ver com o excesso de velocidade com que vinha, muito menos com quaisquer irregularidades que a viatura pudesse ter. O receio devia-se ao facto de não possuir carta de condução.

De referir que há sensivelmente um ano ele circula pelas artérias da cidade sem habilitação para o efeito. Um talão de multa, que significa que o condutor tem a carta de condução retida pela polícia, passado ilegalmente pela módica quantia de 900 meticais por um agente, é o documento que lhe permite continuar a acelerar pelas ruas de Nampula.

“Pode-se dizer, até certo ponto, que esquivar da polícia é uma arte”, diz e acrescenta: “Não no sentido de se tratar de algo louvável, mas no sentido de conhecer o comportamento da nossa Polícia de Trânsito que é paga para garantir a segurança rodoviária”.

Há aproximadamente um ano a conduzir sem habilitação, José lembra-se de ter sido interpelado pela polícia por apenas duas vezes, nas quais apresentou o talão e prosseguiu a sua marcha. Nunca se envolveu em acidentes e sempre evita qualquer contacto com a polícia, passando por vias onde esta dificilmente faz a fiscalização.

Mas naquela sexta-feira (3 de Fevereiro), por volta das 21h00, desfilando à velocidade de 60 quilómetros por hora na Avenida Eduardo Mondlane, nas proximidades da Escola Secundária de Nampula, atropelou um peão que tentava atravessar a estrada.

A primeira reacção foi fugir, porém, o peso na consciência falou mais alto. Depois de ter percorrido pouco mais de 20 metros, inverteu o sentido de marcha até onde a vítima, um indivíduo de 28 anos de idade, estatelada no asfalto, se contorcia de dores no pé esquerdo.

“Naquele momento o receio era ser preso, por isso pensei em escapulir-me, mas o medo de responder a diversos processos, nomeadamente condução sem habilitação e sob o efeito do álcool, falsificação de documentos e abandono da vítima, fizeram-me mudar de comportamento”, conta.

Diante do atropelado, a primeira atitude de José foi fazer uma chamada telefónica para um amigo que é um agente da Polícia de Trânsito, o qual prometeu ajudá-lo a livrarse de eventuais processos em troca de 3500 meticais (2000 meticais para a vítima não lhe denunciar e 1500 para o agente).

Outro caso deu-se em Maio do ano passado (2011) quando Ismael* pediu emprestada uma viatura de um familiar, por sinal um agente da Polícia de Trânsito. Sem carta de condução, acelerou e saiu a voar pelas artérias da cidade de Nampula.

Quando tudo parecia correr bem, o carro teve um problema mecânico, o que fez com que Ismael atropelasse dois jovens, aparentemente embriagados, que se encontravam a dormir na berma da estrada, na Rua da Solidariedade, próximo à Escola Privada da ADEMO. Porém, o facto de ter laços de parentesco com um agente da Polícia de Trânsito livrou-o da responsabilização.

Uma realidade nas vias públicas

Na mesma situação de José e Ismael estão outras dezenas de condutores que circulam pelas vias públicas sem documentos, bastando para tal subornar alguns agentes da Polícia de Trânsito.

De acordo com o artigo 127 do Código de Estrada, os indivíduos encontrados a conduzir sem estarem habilitados são punidos com a pena de prisão de três dias a seis meses e multa de cinco mil meticais.

Mas essa punição parece não ser argumento suficiente para desencorajar essa prática nas estradas moçambicanas. Aliás, os agentes da Polícia de Trânsito, conscientemente, não dão conta de que são autoridades num país onde a condução ilegal tende a assumir o rosto da normalidade.

Na realidade, o que está a acontecer nas estradas das cidades moçambicanas é um processo sem paralelo. Trata-se do crescimento de uma indústria da corrupção, onde a Polícia de Trânsito não age, em grande parte por cumplicidade ou suborno, sendo que as autoridades fazem vista grossa. Os próprios agentes são fomentadores desta prática ilegal, uma vez que eles facilitam “a vida” dos infractores.

O que há de peculiar nas estradas do país não é apenas aquilo que os condutores não habilitados fazem, mas também como o fazem. Tudo é possível graças à grossa corrente de solidariedade existente entre estes e os agentes da Polícia de Trânsito que proporcionam o talão e encobrem amigos e familiares.

Quanto custa obter uma carta?

Até o ano passado, existiam em todo o país cerca de 135 escolas de condução, das quais mais de 30 na cidade de Maputo. Hoje em dia, a proliferação destes estabelecimentos atingiu contornos alarmantes, abrindo um precedente na facilidade em obter uma carta de condução. Há pelo menos uma em cada esquina e muitas sem condições adequadas para o seu funcionamento, tais como equipamentos, viaturas e uma equipa de profissionais.

O preço para obter uma carta de condução varia de escola para escola. Para se possuir uma que habilita o cidadão a dirigir automóveis ligeiros, o preço varia entre os 4500 e 5 mil meticais, e para os pesados entre 7500 e 8500 meticais.

A duração do curso é de três meses, mas, em alguns casos, é preciso subornar os instrutores e/ou os examinadores para passar nos exames. Os valores variam entre os 500 e mil meticais. Por mais que o estudante aprenda a conduzir e conheça o código de estrada e os sinais de trânsito, é quase impossível conseguir a habilitação sem passar pelo esquema de corrupção habilmente montado.

Já no mercado clandestino os preços são outros. Uma carta de condução que pode ser obtida em duas semanas custa 12 mil meticais. O esquema envolve instrutores e funcionários do Instituto Nacional de Viação (INAV).

Tudo é resultado da ausência da mão das autoridades

Uma pesquisa científica feita há anos mostrou que, diante de uma situação de dilema ético, cerca de 10 porcento das pessoas agem de acordo com os rígidos princípios morais, outros 10 agem de forma a tirar o máximo de vantagem. Mas grande parte (cerca de 80 porcento) age com a noção de que, eventualmente, virá a ser descoberta.

Esse resultado repete-se de forma praticamente idêntica em diferentes nações. Portanto, o que faz a diferença no nível de corrupção de cada sociedade não é a ideologia, a religiosidade ou a classe social de origem dos seus dirigentes, mas as formas como as suas instituições vigiam e punem os responsáveis.

No caso de Moçambique, as autoridades agem como se não tivessem nada a ver com o assunto e, por essa razão, a situação tende a engordar, atingindo proporções gigantescas e assumindo a fisionomia de um fenómeno normal. Uma vez a outra, os responsáveis do INAV e da Polícia de Trânsito têm levado a cabo campanhas que visam estancar este mal, mas isso não basta. É necessário que isso seja contínuo.

Como funciona o esquema?

A rede, que envolve os instrutores, examinadores e funcionários do INAV, funciona como se de uma empresa se tratasse. Para se obter uma carta de condução sem se passar pelo banco da escola de condução, basta pagar-se 12 mil meticais (esse é o preço praticado na cidade de Maputo, pode ser que noutros pontos do país seja outro) e o documento sai em menos de duas semanas.

Segundo um dos instrutores com quem conversámos, primeiro abre-se um processo numa escola de condução, a seguir é feita a captação de dados e finalmente emite-se a carta. Em relação aos exames (teórico e prático), o indivíduo não precisa de o fazer porque as notas são lançadas no sistema pelos funcionários do INAV.

“É um processo que não tem como dar errado. Se a pessoa se envolver num acidente e a Polícia quiser saber se a pessoa passou por uma escola, os dados (escola, notas dos exames, etc.) estarão todos lá”.

Entretanto, devido à falta de “clientes”, os fomentadores deste tipo de esquema arranjaram uma outra forma de ganhar dinheiro, que consiste em atrasar a marcação da data dos exames ou reprovar os alunos.

“As pessoas preferem recorrer às escolas porque são muitas e nós fi camos sem ´mercado`. O salário que recebemos não é sufi ciente. Por isso, cobramos entre 500 e mil meticais para agilizar os processos dos alunos e garantir a passagem nos exames. O aluno deve pagar em cada fase”.

“Por mais que o aluno tenha passado em todos os exames, ele terá de pagar algum valor. Nem precisamos de exigir porque eles já sabem. Quem tiver dinheiro pode não fazer o exame e passar”, revela. Não passa pelas mentes deles que estes actos podem resultar em tragédias.

Uma das vítimas destas redes é José Fernando, que diz ter fi cado cerca de 18 meses (ano e meio) numa das escolas da capital para ter a carta de condução, alegadamente porque não tinha dinheiro para subornar o instrutor. “Comecei a frequentar a escola de condução em Junho de 2010 e só consegui fazer o exame prático em Janeiro deste ano”.

José conta que quando chegou a altura de fazer o exame teórico a funcionária pediu o talão de depósito e o comprovativo de captação de dados, mas o seu nome nunca saía nas listas dos exames. Depois de algum tempo, foi à escola para saber o que se estava a passar e foi-lhe dito que o INAV tinha perdido o processo e que, consequentemente, teria de remeter um novo expediente.

“Se a culpa é deles porque é que eu tenho de arcar com as consequências? Há pessoas que começaram a estudar depois de mim e tiveram a carta em menos de cinco meses. Qual é a razão de tratarem as pessoas de forma diferenciada?”, questiona.

Mas havia uma explicação para o martírio ao qual era submetido. “Eu via colegas a juntarem dinheiro para pagar ao instrutor para que este agilizasse as coisas. Eu era desempregado, tinha uma família por cuidar, não reunia condições para tal. Acreditava no meu potencial e na minha capacidade de aprender”.

Embora soubesse conduzir e tivesse recebido elogios dos instrutores, José nunca passava nos exames práticos, o que fez com que ele fosse pedir emprestados mil meticais para pagar ao examinador.

Depois disso, foi só uma questão de dias para que o seu nome constasse do grupo dos aprovados. “Durante as aulas, o professor dizia que quem não tivesse dinheiro não iria passa. Eu senti isso na pele. Até para marcar o exame eles cobram”.

Casos reportados

Semanalmente os casos ligados à condução ilegal que chegam aos registos da Polícia da República de Moçambique não são mais do que dois, o que significa que existe uma relação inversa entre o que as autoridades policiais têm nos seus registos e o que realmente acontece nas nossas estradas. Se é muito difícil medir com exactidão quantos indivíduos circulam sem habilitação pelas estradas do país, menos complicado é saber o número de situações reportadas.

Em Fevereiro do ano em curso, o comandante distrital da Polícia da República de Moçambique (PRM) em Manica, Alfredo José Machava, foi condenado pelo tribunal local à pena de prisão efectiva de três meses por condução ilegal, num processo que foi movido pelo Ministério Público na sequência de uma denúncia popular relativamente ao facto de o comandante da polícia naquele distrito estar a conduzir a sua viatura sem estar habilitado para o efeito.

Em Março do 2011, foram detidos dois indivíduos por condução ilegal em Nampula após terem tentado subornar a polícia. Um dos infractores apresentou para o efeito nove mil meticais e 200 randes e o outro tentou fazer o mesmo ao oferecer 1.200 meticais. Ainda no mesmo ano, um cidadão burundês foi detido por conduzir sem carta de condução e por tentativa de suborno.

Em 2010, o apresentador do programa “Atracções” da TV Miramar, Jossias Matavele, mais conhecido por “Fred Jossias” ou “Rei dos Bifes”, foi sentenciado a 70 dias de prisão efectiva em Maputo, além de pagar uma multa de aproximadamente 10 mil meticais, acusado de três crimes, nomeadamente condução sem a devida licença, envolvimento em acidente de viação e condução sob o efeito de álcool.

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