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Alegorias atraem espectadores (e geram dinheiro) mas são ornamentais

Passado mais de um século depois da sua abolição, a escravidão e o tráfico negreiro suscitam curiosidade entre os estudiosos. Inspirando-se no texto “Navio Negreiro”, de Castro Alves, o historiógrafo brasileiro, Anselmo Cesário, de 32 anos, – que é director e encenador do Mundo Teatro – montou a peça “Cara… Vela”. Ele explica que “a escravatura nunca terminou”, lamentando, no entanto, o facto de o teatro alegórico – muito promovido no Brasil – não explicar nada sobre a história dos negros escravizados.

Quando a discussão é a escravatura, na poesia, os textos do escritor brasileiro Castro Alves são uma referência incontornável. Declamá-los é uma experiência ímpar, mas vê-los apresentados sob a forma de uma obra teatral é diferente e, se calhar, muito difícil, não só para o público ‘viciado’ na comédia mas, também, para quem contracena.

“A escravatura foi abolida há vários anos, mas ela não deve ser esquecida, sob pena de a sua prática ser retomada em alguns círculos sociais. Na verdade, eu penso que ela nunca terminou. Existe e manifesta-se de maneiras diferentes”, começa por dizer Cesário. A peça fala sobre África e os escravos deportados para as Américas a fim de serem explorados nas plantações e decorre numa caravela.

A seguir-se esse pensamento, adereços como capulanas, cabelo “afro” ou “dreadlocks”, incluindo lamparinas – para traduzir o calor humano e o clima tropical quente que caracteriza o continente – são os mais importantes. “A nossa pesquisa ocorre em volta das tradições africanas, muitas das quais, na aculturação, são readaptadas no Brasil”, argumenta.

Uma árvore do baobá

Ao longo da peça o público, que é convidado a interagir com os actores, joga um papel relevante para o espectáculo, na medida em que, ao representar os escravos, embarca e é baptizado com novos nomes.

O encenador explica que “no Brasil há uma lenda com base na qual se explica que, antes de mais, os escravos eram obrigados a dar uma volta em torno da árvore do esquecimento, o baobá, para deixarem a alma e toda a sua história”.

Recorde-se de que durante o colonialismo, na terra de Castro Alves, os escravos africanos não eram baptizados nem registados com os seus nomes verdadeiros. Entretanto, ainda que não seja disso que a obra “Cara… Vela” fala, é facto que para os senhores do tráfico negreiro a volta em torno do baobá era um ritual com base no qual se retirava a história e a memória dos negros escravizados.

Uma história enrolada

Narra-se que, no contexto do tráfico negreiro e do ritual preparatório para os embarques, certas pessoas chegavam às plantações sem alma, sem história, sem passado e sem memória. A verdade é que as pessoas chegavam ao Brasil da mesma forma que saíram de África.

Os africanos traficados para serem explorados eram inteligentes e sabiam ler e escrever, entendiam as leis e alguns – reis e rainhas que haviam sido deportados pelas mesmas caravelas – não eram pobres. No entanto, a par disso, outra questão torna-se importante. Como é que os milhões de escravos, com as qualidades referidas, podiam ser (ou eram) dominados por poucos senhores negreiros?

Esse emaranhado de factos históricos anima as pesquisas de Anselmo Cesário em torno do tráfico negreiro, as tradições africanas, bem como a escravatura.

Estereótipos em torno da cultura

Anselmo Cesário considera que há no Brasil uma tendência de falar sobre a cultura africana de forma alegórica, num sentido ornamental e menos intelectual como se essa componente não existisse. Por exemplo, por essa razão, ainda que Castro Alves, o poeta dos escravos, seja muito conhecido pelos alunos daquele país, os seus textos não são discutidos e problematizados.

“É que sempre que se fala do negro exaltam-se aspectos mínimos, como se essa alegoria servisse para explicá-lo na sua plenitude, o que não é verdade. O negro tem vontade própria, sentimentos, alma, sabedoria e inteligência”.

Por isso, “se nós tivéssemos feito uma peça muito artificial teríamos repetido o erro de falar (apenas) dos seu rituais, o que levaria as pessoas a pensar que a nossa exposição era um ritual e não uma obra de teatro”.

É barato e gera dinheiro

Se as alegorias teatrais têm a lacuna de não explicar a cultura dos povos – muito em particular dos africanos – na medida em que não a discutem na sua essência, valorizando mais os aspectos cómicos, porque é que são muito exploradas? Anselmo Cesário explica que “é mais fácil tratar o espectador como um agente passivo. Assim, a peça chega-lhe facilmente, gerando muitos ingressos para a sala”.

Infelizmente isso, a acontecer na arte, é mau porque “se existe uma coisa que a Igreja, a escola e a família pouco conseguem fazer é iluminar as pessoas. Cabe à arte e à cultura esclarecer os Homens através da abstracção”.

De uma ou de outra forma, “ainda que durante a minha estada em Maputo não tenha visitado muitos grupos e com eles interagido, a mínima experiência que tive no Teatro Mapiko possibilita-me perceber que aqui se faz um teatro vivo e pulsante. Isso, quando comparado ao teatro comercial e burguês, é mais importante”.

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