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Afinal, vale a pena ser moçambicano?

Afinal

A correria do dia-a-dia, no espaço social em que se habita, distrai-nos em relação à importância da nossa terra-mãe, o lugar onde somos originários, para o nosso (pleno) bem-estar. Pouco analisado, esse quotidiano, e todos os seus adjectivos, cria uma grande lacuna no nosso sentido de pertença a uma nação. Entretanto, se existe algo de particular em Mwany é que essa curta-metragem desperta no espectador o sentido de que ele pertence a um lugar e que – por tudo o que ele aglutina e que não se encontra em nenhum outro – vale a pena fazer parte da referida terra.

Talvez, a constatação a que qualquer espectador devia chegar – depois de ver o filme Mwny, do realizador brasileiro Nivaldo Vasconcelos, sobre a mulher africana representada pela moçambicana Sónia André e a sua filha Thandy da Conceição – devia ser uma resposta afirmativa à pergunta que constitui o título da nossa matéria. Para nós, “apesar de tudo” – e quem é desta terra sabe o significado da expressão entre aspas – há que se reiterar que vale a pena ser moçambicano.

O filme Mwany é, como se sabe, realizado por um cidadão brasileiro que diante de uma cidadã africana muito simples, Sónia André, quis descobrir os mistérios que tal simplicidade aglutina(va) ou escuda(va). Estamos conscientes de que, apesar de a sua obra merecer uma crítica favorável – na medida em que Nivaldo foi perspicaz na construção do guião ou da narrativa vivida pela actriz – há muito mais que se aprender sobre Moçambique, em geral, e acerca da tribo machopi, de que Sónia é originária, no específico.

Diante do filme, constatámos que depois de Nivaldo ter percebido na utilização do mussiro (a loção natural com que as africanas tratam o seu rosto) algo exótico, o que lhe chamou à atenção, muitos outros signos dessa cultura – a língua, a capulana, a comida, a música, a timbila, por exemplo – aglutinaram-se ao primeiro a fim de, paulatinamente, se darem os rudimentos da cultura africana.

Se para nós, perante a sua obra, todos estes elementos constituem o factor do reconhecimento da nossa identidade no filme, como é que o realizador os recebeu e como é que convive com os mesmos? “Os símbolos da cultura moçambicana chegaram-me de uma maneira muito visceral, profunda e impressionante de tal sorte que optei por não fazer nenhum tipo de pesquisa sobre o vosso país.

A razão é simples: ‘Eu queria conhecer o Moçambique que a Sónia me trazia’”, começa por dizer Nivaldo Vasconcelos confessando que “tudo – a capulana, a timbila, a Sónia, a cor, a história – para mim era sedutor, ao mesmo tempo que encontrava tudo o que ela estava a falar em mim, porque na minha terra há pandeiro, tambor, sanfona, pífano, entre outros signos, além do facto de a minha mãe e a minha avó fazerem comidas que me lembram as minhas raízes. Isto significa que embora no Brasil também há Mwany”.

É neste sentido que, diz Nivaldo, “a Sónia fez-me perceber que, de alguma maneira, independentemente de onde alguém se encontrar, todas as pessoas possuem a sua Mwany – que é um conjunto de artefactos que revelam quem a pessoa é e de onde vem. E isso é universal. Então, por mais que o filme trate somente de Moçambique que, coincidentemente, é o país da Sónia André, também fala sobre como as pessoas podem preservar a sua cultura”.

Em resultado disso, Nivaldo Vasconcelos garante que “nunca vou esquecer uma série de coisas que a Sónia me disse. Conhecer-lhe, realizar o filme, vivenciar os factos ocorridos antes e depois da criação da obra e a possibilidade de estar em Moçambique são experiências muito emocionantes”.

Mwany

Embora a palavra seja bantu, o facto de Moçambique ser um país multiétnico, multilinguístico e multicultural faz com que muitos dos nossos concidadãos não saibam o significando do termo Mwany. Diríamos que, geograficamente, este termo é aplicado em toda a província de Inhambane e alguma parte do norte de Gaza com o sentido de terra, em cicopi e bitonga, as línguas nativas.

No entanto, Sónia André explica que “o Mwany a que me refiro não tem nada a ver com o lar – o que todas as pessoas têm. É aí onde se encontra o segredo para alguém se manter vivo, como pessoa, e ter o sentido de pertencer a um lugar. Mwany é terra no seu sentido amplo – antropológico e sociológico. A minha Mwany tem comida, brincadeiras e malandrices. Há coisas que, existindo na minha terra, não poderão ser encontradas em nenhum outro lugar”.

A actriz, que é pedagoga musical e estudiosa de artes, confere um sentido sublime ao termo, perpassando assim uma representação exclusiva de uma moradia que “só se pode tornar Mwany se aglutinar em si um significado antropológico, da transcendência e da ligação com a ancestralidade”.

Não é obra do acaso que, no filme, a actriz declara que “sou Sónia da árvore genealógica dos Nhamahangwe, mas, por diversas razões, cresci na família Nhakuwongue. Ou seja, essa Sónia sabe que a sua árvore genealógica é dos Nhamahangwe, mas foi criada no seio dos Nhakuwongue. Ambas estas tribos têm rituais muito peculiares”. Levando a sua opinião ao extremo, a fim de explicar o sentido de pertença a um lugar, Sónia André considera que “ainda que seja de palha, a minha casa tem o valor de um palácio. E só irei dar esse valor se eu souber o seu verdadeiro significado”.

O realizador corrobora com a opinião da actriz e, argumentando sobre a selecção do referido termo para constituir o título da obra, afirma que “de tudo o que ela me falou, o mais marcante foi a palavra Mwany, porque significa pertencer a algum lugar e a tudo o que o mesmo possui. Não se trata de um simples pedaço de chão, mas é o cheiro, a comida, a mãe, o pai, as memórias, entre outros signos”. Nesse sentido, “este filme é sobre o grande tema da identidade, a possibilidade de pertencer a um lugar que é ‘levado’ consigo para qualquer outro espaço para o qual a pessoa se desloca”.

O motivo da criação

Nivaldo Vasconcelos explica que queria falar sobre a vida da africana Sónia André. Porquê? “A resposta está no título. Como alguém consegue sair de Moçambique para outro país e continuar a ser, sob o ponto de vista cultural, a mesma pessoa?” Diz o realizador que os moçambicanos que vivem neste país não percebem até que ponto é desafiador não permitir que a sua cultura se corrompa no estrangeiro, por uma simples razão: “Eles vêem os macuas, as capulanas e tudo o que a actriz declara no filme.

Mas no Brasil, tudo isso está muito distante. Enquanto, aqui, eu vejo a capulana constantemente, no meu país é muito difícil vê-la. Estou muito admirado com tudo isso, porque os moçambicanos são um povo muito lindo”.

De acordo com Nivaldo Vasconcelos, certo crítico de cinema elaborou um texto em que afirma ter ouvido um comentário em que se perguntava porque alguém falaria sobre Sónia André, sendo ela uma pessoa comum e sem feitos excepcionais. O referido analista explicou que é nas coisas menos extraordinária que se escondem realidades mais extraordinárias.

Parafraseando esse comentário, “eu acho que a Sónia tinha algo muito extraordinário – ser alguém que se mantinha fiel à sua cultura. E ela foi extremamente generosa em dividir isso connosco. É uma mulher muito forte que cria a sua filha sozinha, porque, como sabemos, no mundo, a mulher continua submissa ao homem passando por situações sociais difíceis”. Além do mais, Sónia André é uma estrangeira que vive no Brasil há sete anos, para onde levou a sua cultura.

“A preservação de uma identidade é algo muito primoroso e dá muito orgulho ver, muito em particular porque eu sou originário de um país muito grande que é quase um continente, com várias identidades”, diz Nivaldo.

Embora Moçambique possua uma riqueza cultural fortíssima, como acontece no Brasil, “as pessoas vão perdendo essa ancestralidade, essa ligação com a casa e a sua cultura. Em sentido contrário, a Sónia, que vem do outro país, não se mimetizou com os brasileiros. Disse para si mesma que ‘eu sou moçambicana e aplico o mussiro no rosto. Se alguém me perguntar se me queimei, eu vou explicar-lhe o que aconteceu’”.

Uma mulher que vive a realidade

A experiência do filme é profundamente original de tal sorte que, mesmo quem não conhece Sónia André, fica com a impressão de que teve uma experiência real com ela. É que, e como se espera de um documentário, a actriz vive, de forma intensa, as peripécias da obra.

“Eu não trouxe nada no filme, vivo o que se filmou. O director Nivaldo Vasconcelos encontrou-me no supermercado com mussiro na face e, espantado, pensou que eu havia queimado o rosto. Essa é a minha cultura. Nós limpamos a cara aplicando mussiro e os homens apreciam-nos. Acham-nos lindas porque cuidamos de nós não do ponto de vista da química que o Ocidente nos quer impor e inculcar”, diz.

Independentemente de onde ela se encontre, Sónia André vive a sua realidade: com a capulana, carrega a criança no colo, dirigindo-se ao supermercado ou a qualquer outro lugar. Por exemplo, “eu fazia-me transportar pelo ônibus com a minha filha nas costas, um cesto de fraldas e um violão – que é um instrumento didáctico – para a faculdade, usando a capulana”.

E essa experiência, puramente africana, é muito impressionante no Brasil, sobretudo, para os brasileiros porque traduz alguma diferença cultural profunda. O quotidiano de Sónia André é, na verdade, uma experiência de luta pela sobrevivência, porque – apesar de as pessoas se terem acostumado a essa vivência com o curso do tempo – não é normal que uma estudante vá à escola com uma criança recém-nascida.

No entanto, na faculdade, “eu tirava o meu mucume e a minha capulana – o que significa que não precisava de comprar lençol – para estendê-la no chão a fim de que a minha filha dormisse.

Em casa faço xima e xiguinha para me alimentar. Vivo! E nunca quis que as pessoas que me vêm pensassem que estivesse a representar algo. Eu vivo a minha realidade”. Enfim, quer se queira quer não, um sucesso de crítica e de premiação no Brasil, o filme Mwany é uma prova inequívoca de que, afinal, vale a pena ser moçambicano.

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