Para continuarmos  a fazer jornalismo independente dos políticos e da vontade dos anunciantes o @Verdade passou a ter um preço.

 
ADVERTISEMENT

Aborto: respeitar a moral ou salvar vidas?

Aborto: respeitar a moral ou salvar vidas?

Quanto custa interromper uma vida? Muito pouco. Ou seja, 500 meticais. Contudo, há sequelas por detrás de um aborto que duram para sempre. Assim como há condições nas quais a única forma de manter a vida é abortar…

O que o drama de Rosita revela sobre o aborto clandestino? A primeira reacção pode ser a de que se trata de um problema pessoal. Mas, na verdade, mostra um flagelo que destrói a sociedade moçambicana. E a jovem pode ser usada como um exemplo das mulheres que fizeram um aborto clandestino e hoje são abrigadas a assumir as suas consequências pelo resto da vida.

Sem ter revelado muitos detalhes da sua história, conta- -nos o martírio no qual vive, quatro anos depois de ter feito um aborto clandestino. Sentada na sala de espera do Departamento de Obstetrícia do Hospital Central de Maputo (HCM), Rosita José aguarda por uma consulta com o médico.

Mora no bairro Khongolote e, com apenas 23 anos de idade, já fez dois abortos. O primeiro, quando tinha somente 15 anos – por causa da idade – e o segundo aos 18 – porque o namorado recusou-se a assumir a gravidez.

Estes dois acontecimentos mudaram a vida de Rosita, deixando uma marca profunda e dolorosa. Presentemente, não consegue conceber porque, segundo o diagnóstico, os abortos foram mal feitos. Uma realidade (dura) que terá de carregar pelo resto da vida.

“No princípio, tudo parecia ter corrido bem”, conta. Mas a história mudou quando, no ano passado, quis engravidar. Conseguiu ter o embrião no útero, porém sofreu um aborto espontâneo. E, mais tarde, já não conseguia engravidar. “Fiz muitos exames e, no fim, fiquei a saber que tinha contraído uma infertilidade secundária, como consequência dos abortos” diz.

Com os olhos inundados de lágrimas, Rosita não consegue disfarçar a dor que sente. “Aconselho todas as jovens a optar por um aborto seguro, mas, para que tudo isso não aconteça, evitem engravidar porque as consequências são imprevisíveis, hoje eu corro o risco de perder o lar”, aconselha.

Foram casos como este que, recentemente, levaram o Governo moçambicano a aprovar uma proposta de revisão do Código Penal em vigor no país há mais de um século.

A referida proposta prevê, dentre outras matérias, a liberalização do aborto durante os primeiros três meses. A mesma deverá ser submetida ao parlamento para discussão e, ao que tudo indica, será aprovada, se tivermos em conta que todas as propostas apresentadas pelo Executivo de Guebuza à Assembleia da República (AR), onde a Frelimo detém a maioria, são aprovadas.

A proposta tem como objectivo, segundo o Governo, responder ao aumento de abortos clandestinos que são praticados um pouco por todo o país, os quais tem provocado a morte de mais de cinco mil mulheres por ano, e por considerar que esta já era uma prática recorrente na nossa sociedade.

Porém, Moçambique parece ter tomado esta decisão de uma forma diferente, se comparado com os outros países que recorreram ao referendo para liberalizar o aborto até um certo período, neste caso 12 semanas (3 meses). Um desses países é Portugal, que realizou dois referendos, o primeiro em 1998, no qual o “não à despenalização” ganhou com 51 porcento, e o segundo e último em 2007, onde o “sim à liberalização” desta prática venceu com 59 porcento dos votos.

Mesmo antes de a proposta ser submetida à AR, as reacções já se fazem sentir através de diversas instituições religiosas e organizações da sociedade civil, prenúncio de que a aprovação da mesma, que faz parte da proposta de revisão do Código Penal em vigor no país há mais de um século, isto é, desde 1886, não satisfará a todos.

Por se tratar de uma decisão que, ao ser tomada, irá mexer com todos os valores e princípios que constituem o alicerce da nossa sociedade, o mais sensato seria fazer uma consulta à sociedade, à semelhança do que se faz quando se é para eleger o Presidente da República e os deputados.

Quanto custa um aborto?

Embora seja uma prática ilegal, a interrupção voluntária da gravidez pode ser feita nos hospitais públicos do país, nomeadamente no Hospital Central de Maputo e no Hospital Geral José Macamo, em Maputo. No HCM, o aborto é feito no Departamento de Obstetrícia.

Para tal, a pessoa deve fazer o exame de ecografi a, que custa 150,00MT (cento e cinquenta meticais), e remeter um requerimento dirigido ao director do departamento acompanhado do exame de hemoglobina e fotocópia do Bilhete de Identidade da pessoa interessada.

Caso o pedido seja aceite, a pessoa deve pagar 500,00MT (quinhentos meticais), após o que lhe é dada uma receita que deve ser apresentada na farmácia (pública ou privada) para a aquisição de comprimidos usados no aborto, que custam 350,00MT (trezentos e cinquenta meticais). Feitas as contas, 1000,00MT (mil meticais) bastam para se interromper uma gravidez. O aborto deve ser feito até 12 semanas de gestação, excepto por indicação do médico.

Adolescentes, …“rainhas” do aborto

No Hospital Central de Maputo, os Serviços Amigos do Adolescentes e Jovens (SAAJ), afectos à Geração Biz, para onde os adolescentes com idade compreendida entre os 15 e 22 anos se devem dirigir caso pretendam fazer o aborto, recebem em média 30 pessoas por semana.

Segundo informações facultadas por uma funcionária daquele departamento, as adolescentes optam pelo aborto por temer a reacção dos pais ou porque alegadamente ainda quererem estudar. O mais estranho é que por vezes a mesma pessoa é atendida mais de uma vez em menos de um ano.

“Os adolescentes têm muitos métodos contraceptivos à sua disposição, muitos nem estão à venda, mas não os usam. Quando lhes questionamos, dizem que o preservativo rompeu ou porque não deu tempo de o usar”, disse.

Os abortos que não chegam ao hospital

Como forma de contornar os obstáculos impostos pelos hospitais públicos, muitas pessoas, mesmo cientes dos riscos a que estão sujeitas, têm optado pelo aborto clandestino, feito muitas vezes por indivíduos que estão ligados ao sector: enfermeiros reformados ou expulsos do Sistema Nacional de Saúde, o que prova que existem redes de roubo de medicamentos nos hospitais.

José Cossa*, enfermeiro do HCM, diz que é conhecido no seu bairro por fazer este tipo de trabalhos. Além de abortos, faz consultas de outras doenças e possui medicamentos e um livro de receitas em sua casa. “Não existem diferença entre as minhas receitas e as do hospital porque são as mesmas. Faço circuncisão, abortos, trato pessoas doentes e vendo medicamentos. Quando vejo que a pessoa não melhora, levo-a ao hospital”, afirma.

Questionado sobre o valor necessário para fazer um aborto, este disse que “depende da fase de gestação. Se estiver no início, cobro 900 meticais, mas se tiver 12 ou mais semanas a pessoa paga 1500. O valor é um pouco elevado em relação ao cobrado no hospital porque o atendimento é rápido, não mando fazer requerimentos ou exames”, concluiu.

Farmácias são coniventes

Apesar de a venda do medicamento utilizado para o aborto ser feita mediante prescrição médica, é possível obtê-lo nas farmácias mesmo sem se apresentar um documento. Das cinco farmácias por nós visitadas, apenas uma é que não permitiu vender os comprimidos sem a receita.

Nas restantes quatro, os técnicos disseram-nos que podiam vendê-los mesmo sem receita, mas para tal a pessoa interessada teria de pagar um valor extra.

O medicamento custa em média 350,00MT (trezentos e cinquenta meticais), mas iriam cobrar 500,00MT (quinhentos meticais) porque não tínhamos a receita. O mais caricato é que os técnicos afectos às referidas farmácias nem sequer perguntaram os dados da pessoa a quem se destinava o fármaco, condição imprescindível para que o aborto ocorra sem riscos.

Neste caso não se pode atirar a culpa só às farmácias. Tratando-se de um fármaco cuja venda só pode ser feita mediante prescrição médica, o normal seria o Ministério da Saúde (MISAU) ter um mecanismo de controlo do mesmo, tais como relacionar o número de unidades vendidas com o número de receitas apresentadas pelas farmácias.

Reacções

“Negar o aborto seguro à mulher significa continuar a matá-la”, defende a organização Fórum Mulher

O Fórum Mulher, uma organização não-governamental que trabalha em prol do desenvolvimento da mulher, defende a proposta por considerar que esta vem legalizar uma prática comum na nossa sociedade, sendo, assim, uma das poucas (senão a única) organizações que se mostrou a favor desta medida.

Em entrevista ao Correio da Manhã, Maira Rodrigues, coordenadora do programa sobre direito sexual e reprodutivo daquela organização, diz que o Fórum Mulher “é favorável à decisão do Conselho de Ministros porque o aborto já está a ser feito nos hospitais centrais de Maputo, Beira e José Macamo”

Para Maira Rodrigues, “negar às mulheres o acesso ao aborto institucional significa continuar a matá-las, e a manter o índice de mortalidade materna, que já é alto, porque, mesmo com a proibição, o aborto continua a ocorrer”

Questionada sobre a eventual “banalização” do aborto, Maira Domingos descarta esta hipótese, referindo que “o Governo precisa de reforçar os serviços de informação, tornar acessíveis os métodos contraceptivos e as campanhas de educação e promover as estratégias de articulação com o sector da Educação”.

“Aceitar o aborto seria encorajar a morte”,

Conselho Cristão de Moçambique

O Conselho Cristão de Moçambique, uma organização que congrega mais de 20 igrejas, considera que não há campo para a legalização do aborto em Moçambique e que o mesmo só pode ser feito nos casos em que se prove que a gravidez coloca em risco a vida da mulher e da criança.

Segundo Julião Muthemba, director dos Serviços Ecuménicos do Conselho Cristão, “mesmo nos casos de violação, o aborto não devia ser permitido porque, primeiro, a criança não é culpada e, segundo, temos de respeitar os direitos humanos na sua plenitude. É a partir do momento em que a mulher está na fase de gestação que esses direitos devem ser respeitados”, disse.

Em relação à justificação evocada pelo Executivo para se elaborar esta proposta, segundo a qual a mesma tem como objectivo responder ao crescente número de abortos clandestinos praticados no país, Muthemba diz que a solução não seria a liberalização do aborto, mas sim a moralização da sociedade.

“A sociedade está a perder os seus valores. É necessário resgatar a nossa sociedade, abrir espaço para que a voz das igrejas e das pessoas mais velhas seja ouvida”, afirmou.

“A prática do aborto nos hospitais foi autorizada em resposta aos casos de mortalidade materna registados no país em consequência dos abortos clandestinos”, Leonardo Chavana, porta-voz do MISAU.

O Ministério da Saúde diz ter autorizado os hospitais públicos a fazerem abortos como forma de responder às situações em que há risco de vida, má formação do feto, e aos casos de mortalidade materna decorrentes de abortos mal feitos (clandestinos).

Segundo o porta-voz do MISAU, Leonardo Chavana, a principal causa da mortalidade materna – aquela que ocorre durante a gravidez ou 12 semanas após parto – são os abortos clandestinos.

Actualmente, são registados quatro mil casos de mortalidade materna por ano no país. Muitos destes casos ocorrem nas comunidades devido à distância que as separa das unidades sanitárias. Poucas são as vezes em que as mortes ocorrem nos hospitais.

Por via disso, “o ministério é favorável à proposta porque, a ser aprovada, irá desencorajar a prática do aborto clandestino. O MISAU vê esta proposta como um instrumento que irá contribuir para a redução dos casos de mortalidade materna”.

Em relação à comercialização do medicamento para o efeito, Leonardo Chavana diz que o mesmo só pode ser vendido mediante receita médica e as farmácias têm a lista contendo os nomes dos médicos com autorização para tal.

Colocado a par dos casos de venda clandestina, este disse que “o ministério tem conhecimento do assunto e, como forma de desencorajar tal prática, tem feito inspecções regulares às farmácias. Os nossos inspectores fazem-se passar por clientes e, caso se detectem tais irregularidades, a farmácia visada é multada e, nalguns casos, encerrada”.

No que diz respeito às pessoas que exercem a medicina clandestina, o porta-voz do MISAU diz que o ministério não tem autoridade para “vasculhar” as casas dos suspeitos, isso cabe às autoridades competentes, designadamente a polícia. “O que o MISAU faz é identificar os casos e encaminhá- los a essas autoridades. Há pessoas que foram detidas e julgadas como resultado do nosso trabalho”, disse.

Riscos de um aborto clandestino

De acordo com dois médicos ouvidos pela nossa equipa de reportagem, o aborto, quando feito em condições não adequadas, pode resultar em morte. Até porque “devido ao material usado que, por vezes, carece de esterilização, surgem infecções que podem levar à infertilidade, sem falar das sequelas psicológicas que devem ser tidas em conta.

Anencefalia: outro problema que deve ser tido em conta

Muitos países permitem o aborto em duas situações: se a gravidez é resultado de estupro ou se há riscos para a mãe. Mas muitos não contemplam a hipótese de haver necessidade de se recorrer ao aborto em resultado de uma anencefalia, quando há uma anomalia congénita, irreversível e incompatível com a vida, um problema já reconhecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS). O Brasil, por exemplo, autorizou às mulheres grávidas de anencéfalos a fazerem o aborto.

O que é anencefalia?

A anencefalia é uma anomalia congénita grave. O feto cresce sem a caixa craniana e a maior parte do encéfalo. É letal em 100 porcento dos casos. Metade dos fetos anencefálicos tem paragem dos batimentos cardíacos antes do parto.

A sobrevivência fora do útero pode durar duas horas e, em raras situações, alguns dias. Segundo a OMS, o que define a morte é a falta da actividade cerebral e, como o anencéfalo não tem cérebro, ele seria um natimorto.

Causas:

A principal causa apontada por especialistas é a carência de ácido fólico (vitamina do complexo B) durante a gestação. Comprimidos de ácido fólico ingeridos semanas antes da concepção e nos três primeiros meses de gravidez ajudam a evitar o problema.

Diagnóstico:

É possível a partir da 12ª semana de gestação, por meio de uma ultrassonografia. A incidência da anencefalia é de um caso para cada 700 nados vivos, sendo que, desses, 95 porcento evoluem para óbito na primeira semana após o parto.

Riscos para a mãe:

De acordo com a OMS, a gestação de um feto anencefálico traz maior risco para a mulher, em particular no que diz respeito à hipertensão, acúmulo de líquido amniótico e pré-eclampsia. O sofrimento psíquico pode provocar stress pós-traumático.

WhatsApp
Facebook
Twitter
LinkedIn
Telegram

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

error: Content is protected !!