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A vida oculta das mulatas brasileiras

O quotidiano das chamadas mulatas show, aquelas que trabalham sambando, não têm tanto glamour como imaginamos, mas complementam o orçamento doméstico. Ser mulata no Brasil exige, nos dias de hoje, muito mais do que exibir cor e traços intermediários entre o branco e o negro.

Estrela da escola de samba Grande Rio, a passista Rose Bombom, de 21 anos, esbanja simpatia e beleza. O contraste da pele negra com os olhos verdes é raro e espectacular. Registada como Rose Cláudia dos Santos, ela tem porte de princesa, mas mora num barranco na Favela Parque Centenário, em Duque de Caldas.

Ela ajuda a avó – com quem mora desde os 8 meses, quando foi abandonada pela mãe – a sustentar oito primas menores. Namorado, faz tempo que não tem. O último terminou por causa do samba. “Ele disse: ‘Se você me amasse, largaria tudo’.” Rose preferiu ficar sozinha.

“Ser mulata é uma coisa que está no sangue. Já vem de pequena”, diz ela, misturando cor e personagem, origem e profissão.

A mulata do imaginário popular, que faz sucesso no samba e na televisão, tem, além do corpo escultural, habilidades de dançarina e talentos de actriz. Não apenas para sorrir o tempo inteiro. Mas para encarnar, de forma convincente, um personagem que pouco tem a ver com sua existência.

Ana Pérola, de 24 anos, é um bom exemplo das contradições entre a mulher e o mito. Ela estrela os shows nocturnos da Mocidade Independente de Padre Miguel. À noite. Durante o dia, é apanhadora de lixo no Rio de Janeiro.

O uniforme laranja da Companhia de limpeza Urbana é bem diferente do biquíni de paetês (adereços) e das plumas que ela usa quando se apresenta. ‘As pessoas pensam que para ser mulata basta vestir um biquininho e sambar”, afirma ela, cujo nome verdadeiro é Ana Lúcia da Silva.

Rafaela Bastos, de 29 anos, passista da Mangueira, fez faculdade de geografia. Amante dos livros, gosta de pensar a mulata através da história. ‘Tudo isso vem da escravidão. Os negros eram comprados pela sua força e beleza”, afirma. Rafaela tem razão. Esse tipo físico de brasileira mestiça ganhou prestígio devido aos fetiches escravocratas – que, de alguma forma, permanecem.

Filha do branco descendente de portugueses com a negra trazida da África, a mulata virou símbolo de sensualidade e permissividade. No século XVIII, Gregório de Matos escrevia sobre a intensa actividade sexual das mulatas na Bahia. Na virada para o século XX, Aloísio de Azevedo reforçaria esse símbolo com a sua Rita Baiana, de O cortiço, uma das personagens mais famosas da nossa literatura. Descrita como bonita e sensual, era comparada pelo autor a uma “cadela no cio”. Porém, muitas vezes, a mulata sedutora pode ser apenas ficção.

Tânia Bisteka – Tânia de Fátima Souza Lima –, de 36 anos, casouse com o homem que amava, mas flagrou-o com outra mulher quando estava grávida de cinco meses. Com o choque, perdeu o bebé e nunca mais quis ter filhos.

Sônia Capeta, da Beija-Flor, destrói outro tabu. Aos 50 anos, Sônia Maria Regina da Silva, a ex-rainha de bateria, revela que, depois de decepções amorosas com homens, agora vive com uma mulher. ‘É igual, o amor é o mesmo”, diz.

Apesar da cintura fina e do quadril frondoso, uma mulata nunca é igual a outra. Se a vida real das mulatas reflecte a pródiga diversidade humana, o papel que elas interpretam no imaginário brasileiro, e não só, é sempre parecido. A mulata lasciva do Brasil colónia foi sucedida pela mulata fogosa do Brasil imperial.

Agora, transformou-se na mulata show do Carnaval e da televisão. Lançada pelo teatro de revistas, essa é a mais recente encarnação do velho mito. Foi lançada por Carlos Machado, que começou a colocar mulatas nos seus espectáculos. Elas fizeram sucesso, e a moda chegou às escolas de samba, que já tinham passistas.

“Hoje, mulata é uma profissão, que exige talento e disciplina”, diz Sérgio Cabral, especialista em Carnaval. Idealizador e roteirista do documentário, o jornalista Aydano André Motta diz que, ao longo da pesquisa, percebeu o preconceito em relação à expressão artística das mulatas. “Poucas pessoas olham para elas como artistas de verdade”, afirma. Por isso, muitas mulatas tentam reconhecimento – e dinheiro – como dançarinas fora do Brasil. Uma opção que tampouco é fácil.

Elaine Ribeiro, de 28 anos, ex-rainha da Pedra, saiu do Brasil aos 18. Morou em diversos países, sempre dançando. Viveu por seis anos na Itália. Nem sempre tinha dinheiro. Voltou a saber falar três idiomas. Hoje trabalha num hotel, no Rio de Janeiro.

Dandan Firmo, de 28 anos, do Salgueiro, mora no Morro do Vidigal. Também já tentou o exterior. Por um ano, viveu em Moscovo. ‘Passei frio e muita solidão”, afirma.

Havia dias em que ela não podia sair de casa por causa dos ataques de skinheads. “Eles não toleram gente de outra raça e imigrantes.” O Brasil mais do que tolera as mulatas. Admira-as mesmo, mas talvez ainda não as entenda completamente”.

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