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À sombra da vida

O calor era terrível e já começava a incomodar. Anunciava-se que continuaria por mais duas semanas. Nunca antes se desejara a chuva como naquele dia, mas não havia nenhum sinal. Era poeira por toda a parte. As paragens de chapas estavam cheias de pessoas preocupadas em chegar a casa.

Dentro da igreja quase vazia, alguns crentes, com aparência medonha e ajoelhados diante da gigantesca cruz, olhavam para a imagem do filho unigénito como quem estava cansado de pedir a mesma coisa há muitos milhões de anos-luz. Na rua, o trânsito era intenso. O som de carros intercalava-se com o de buzinas. Já havia três semanas que o tempo se comportava daquela maneira. Frágil e cansado, procurava por um táxi na longa e agitada avenida. Mas encontrou um na última esquina, próximo de uma extinta unidade sanitária. “Avenida Marginal, por favor!”, ordenou o homem de cabelo grisalho desgrenhado. Sorridente, o taxista tentou puxar uma conversa: “Está muito calor hoje”. “Despacha-te por favor”, disse, pois queria ficar em silêncio. Mas o motorista estava ávido por desenferrujar a língua.

“Desculpa chefe, é para já”. Pisou no acelerado, a uma velocidade impressionante, e alcançou a Avenida Principal. Subitamente, viu-se mergulhado num caótico e aterrorizante tráfego. “Merda! É só ser sexta-feira que a avenida fica deste jeito”, comentou o taxista, olhando para o congestionamento de viaturas. O semáforo fechou. O homem, apreensivo, olhou para o relógio do táxi que marcava 16:45. Não demorou que o taxista se apercebesse da sua preocupação com as horas: “Não se preocupe, chefe! Num instante, estaremos lá”. Sem dar atenção, acendeu um cigarro e pela janela da viatura lançava olhares de enlevo para a alvura gasta dos edifícios que formavam a cidade. O semáforo abriu.

A morosidade do trânsito era de bradar os céus. Irritados e impacientes com a situação, os automobilistas buzinavam e insultavam insistentemente os que estavam à sua frente. O táxi desviou-se de outros carros e entrou na primeira esquina. O homem estava tenso. Tentando descontrai-lo, o taxista começou a falar de um livro de auto-ajuda que começara a ler na véspera mas não conseguiu sair do prefácio: “Já leu o livro ‘10 Passos para atrair riqueza e felicidade?’”. Apesar de ter sido o único livro na sua vida que conseguiu ler de capa a capa, o homem respondeu que não, porque não queria muita conversa.

Mesmo assim, o motorista pôs-se a falar: “Sabe porque um homem é feliz e próspero e outro é triste e miserável?”. De cabeça baixa e olhos fechados, perguntou sobre as horas na vã tentativa de cortar a conversa. “5 para as 5 da tarde”, disse o taxista e continuou: “O segredo está no pensamento. Há um tesouro dentro de nós e…”.

Vendo que o homem não estava interessado no assunto, o homem parou de falar e carregou no botão do reprodutor de som instalado na sua viatura e a música engoliu o silêncio. Era o seu artista favorita: “Este miúdo canta. Ele era meu vizinho… Vou ficar aqui”. O homem saiu do táxi e caminhou ao longo do passeio. Um folheto que rebolou até aos seus pés chamou-lhe a sua atenção. Lia-se no mesmo: “Procura-se um cachorro lindo, de cor branca, tamanho pequeno.

Desaparecido desde ontem à tarde, quando a sua dona se encontrava a descansar na melhor e mais luxuosa estância turística da cidade e do país, que fica à beira-mar. Gratifica-se com avultadas somas em dinheiro a quem o achar vivo ou morto”. Sorriu pela primeira vez logo após a leitura. Tirou os sapatos de estimação e pôs-se a correr. Corria como nunca na vida pela praia. Desfrutava do ar fresco do vento que lambia o seu rosto. Ouvia-se o gemido das ondas. Corria continuamente. E caiu de costas exausto e permaneceu naquela posição por um instante.

A sua respiração ofegante confundia-se com o som produzido pelas ondas que se arrebentavam no muro de protecção da orla marítima. Fechou os olhos e, de repente, o som seco e breve de gotinhas de água incomodava-o. “Acorda”, gritou a sua esposa, mas não reagiu. “Acorda, Sebastião”, levantou-se e espreguiçou-se. “O que é que se passa, homem?”, perguntou preocupada. “Nada mulher, apenas um sonho raro”. Debaixo da mangueira do seu quintal olhou para o céu. Sacudiu a areia, dobrou a sua esteira e levou-a para dentro de casa. E começou a chover fortemente.

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