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A Regra Poética de Kapuscinski

O lendário repórter polaco foi testemunha de grande parte dos mais importantes acontecimentos da segunda metade do século XX. Uma biografia escrita por um dos seus discípulos põe agora em causa a construção da “lenda”.

A característica fundamental de uma biografia bem investigada – a que raramente respeita o tão humano desejo do biografado de que alguns factos fiquem soterrados para sempre – foi, ao que tudo indica, cumprida por Artur Domoslawski, um jornalista e dramaturgo polaco de 43 anos, actualmente ao serviço do diário “Gazeta Wyborcza”, que em Fevereiro último publicou “Kapuscinski Non-Fiction”, um monumental texto biográfico de 600 páginas sobre o mítico repórter polaco, falecido em 2007, que se tornou na imagem de marca do jornalismo literário.

Domoslawski passou três anos a entrevistar mais de 100 fontes humanas, a ler milhares de documentos, incluindo do arquivo privado de Kapuscinski, e a viajar por todo o mundo para conseguir escrever uma “trajectória de vida” o mais completa possível daquele que considera um “mentor e amigo” e uma “testemunha do século XX”.

No entanto, apesar do seu esforço, a biografia – cuja tradução integral em inglês só estará disponível em 2011 – tem sido analisada a partir de dois grandes eixos: os factos ocultos da vida de Ryszard Kapuscinski, nascido em 1932, que deu os seus primeiros passos num jornal de Varsóvia, o “Sztandar Mlodych”. As suas reportagens sobre a reconstrução da Polónia no período pós-guerra captaram a atenção da agência polaca de notícias, a PAP, que o contratou. Na agência, o repórter conseguiu ser nomeado, em 1965, enviado especial ao Terceiro Mundo. “O século XX fica na história da Humanidade como o da descolonização. Nunca antes na História surgiram na cena política mais de 80 países e nações do mundo independentes.

[…] A mim tocou-me, como jornalista, ser um observador destes grandes eventos migratórios, em sentido físico e político, disse ele, numa entrevista ao “El País”, em 2001. Começou pela Índia, Paquistão e Afeganistão. Mas logo em 1958 foi enviado para o Gana, tomando pela primeira vez contacto com um continente que o seduziu: África. “Coube-me participar, observar e escrever sobre actos de guerra, golpes de Estado, todos esses eventos dramáticos no chamado Terceiro Mundo.”Foi o começo de uma viagem que o levou a reportar, até 1990, em mais de 20 países africanos e sul-americanos, incluindo Etiópia, Nigéria, Tanzânia, Ruanda, Uganda, Guatemala e El Salvador.

E também Angola. Kapuscinski foi um dos escassos repórteres que ficou em Angola na altura da independência, em 1975. As suas reportagens sobre este momento histórico deram origem a um livro, “Mais um Dia de Vida”, publicado em 1976. É dele a célebre descrição de que Luanda, na altura, parecia um estaleiro a funcionar 24 horas por dia, devido ao barulho dos martelos a fechar caixotes de madeira, onde os portugueses em fuga embalavam os seus bens.

Domoslawski, na sua investigação, obteve dados suficientemente credíveis para comprovar este longo périplo pessoal e profissional, mas defende que encontrou igualmente outros que lhe permitiram escrever sobre a “criação de uma lenda dele mesmo” feita por Kapuscinski, através de práticas pontuais de ocultação e de invenção exercidas pelos biografado a partir do momento em que começou a ter reconhecimento mundial.

Quanto ao primeiro tipo, o biógrafo diz que Kapuscinski nunca escondeu o seu orgulho de ser comunista, mas não revelou a sua relação esporádica com o regime ditatorial polaco, nomeadamente com o aparelho secreto do Estado. Quanto ao segundo, Domoslawski diz “ter dúvidas” de que Kapuscinski tenha sido condenado à morte por fuzilamento no Congo e a “certeza” de que ele “deixou que se inventassem relações de amizade com Che Guevara ou Patrice Lumumba” porque, provavelmente, isso reforçava a sua lenda de testemunha de grandes episódios históricos.

Se o título da biografia produzida por Domoslawski é particularmente feliz como porta de entrada para as revelações inéditas da vida do repórter polaco, é mais ainda para os dados descobertos relacionados com os seus textos, porque invoca de maneira perfeita o que está em causa. Efectivamente, “non-fiction” (não ficção), a par de “literaty journalism” (jornalismo literário), é apenas um dos termos contemporâneos mais comuns para designar um género jornalístico encetado por Truman Capote com a publicação, em 1965, do texto “In Cold Blood” (“A Sangue Frio”, versão portuguesa livros do Brasil).

O género foi, até ao final da década de ´70 do século passado, conhecido como “new journalism” (novo jornalismo) e tem sido praticado por uma série de jornalistas, como Tom Wolfe e Gay Talese, nos tempos iniciáticos, ou John McPhee, Philip Gourevitch e William Langewiesche, nos dias de hoje, que não o consagraram como uma expressão literária de alto nível, a força máxima de investigação e redacção jornalística, como criaram a partir dele um enorme mercado global, um dos mais respeitados e lucrativos da edição. No entanto, desde os seus primeiros tempos, exactamente desde o texto seminal de Capote, a metodologia do jornalismo literário a que Kapuscinski preferia chamar “reportagem literária”, esteve sempre em causa.

O objectivo do jornalismo literário é o de reproduzir em texto uma realidade, abarcando toda a complexidade que lhe é inerente, excluindo assim, à partida, qualquer criação ficcional. As ferramentas para o atingir são uma investigação que consiga recuperar todos os factos relacionados com essa realidade e o uso das técnicas narrativas da ficção, para que, deste modo, sejam incluídas no texto todas as dimensões próprias de situações reais.

O problema está, como não podia deixar de ser, na extensão ou elasticidade da fronteira entre facto e ficção, a partir do momento em que se torna impossível obter o primeiro com exactidão, uma situação enfrentada a todo o momento por qualquer jornalista. Na biografia que escreveu, Domoslawski coloca a hipótese de Kapuscinski ter atribuído a si mesmo uma “licença poética”, construindo assim de modo ficcional presentes em alguns dos seus principais livros, como: “O Imperador”, sobre o regime e a queda do Imperador etíope Hailé Salassié; “O Império”, uma digressão sobre a queda do império soviético; e “Ébano”, que reúne a sua experiência de 20 anos em território africano.

 Em todos estes livros, Domoslawski diz ter recolhido informações que o levam a levantar hipóteses sólidas “de que Kapuscinski fazia experiências e por vezes entrou no território da literatura sem dar conta”, possivelmente através da criação de “pessoas compósitas”, reunindo numa só pessoa os traços de várias, e de que ele “moldou a realidade”, isto é, escreveu a partir do seu olhar, não procurando confirmar se este correspondeu totalmente ao que aconteceu. No fundo, refere Domoslawski, Kapuscinski, empregando os mesmos métodos que Capote, por exemplo, preferiu ignorar os detalhes que não obteve ou só obteve de modo deficiente, “realçando aquilo que chamava de essência” do que testemunhou.

Para Domoslawski, a saída é considerar os livros mais importantes do repórter polaco como “ficção”, eliminando, assim, o problema de credibilidade. Mas a questão não é assim tão simples. O debate agora reiniciado entre os puristas, como Timothy Garton Ash ou John McPhee, que defendem ser essencial o respeito integral pelos factos, e os liberais como Neal Ascherson, que acreditam ser permitida alguma criação ficcional a partir dos factos investigados, é na verdade uma discussão ideológica sobre a capacidade de o jornalismo estar ao mesmo nível de outros géneros literários e acima de tudo sobre os limites que se colocam a quem tem como ambição passar a texto uma realidade.

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