Um ano após a sua eleição e a dois meses da abertura do Campeonato do Mundo de futebol que irá ter lugar na África do Sul, o Presidente sul-africano enfrenta numerosas dificuldades: tensões raciais, descontentamento social, divisões internas no governo… Investigação sobre um homem fragilizado.
Em Julho de 2009, cem dias após a sua eleição, implorava aos seus apoiantes: dêem-me tempo! Dêem uma hipótese a este governo”. Antes, as townships, que, desde a era Mbeki, se encontravam regularmente em ebulição, incendiavam-se de novo. Nove meses mais tarde, ou seja, um ano após a sua chegada ao poder, a situação piorou. A cólera é cada vez mais forte no seio das classes populares, as greves sucedem-se, a coligação no poder desfaz-se e as tensões raciais exacerbaram-se.
O Campeonato do Mundo de futebol, assim se espera, não deverá constituir mais de que uma breve pausa para o chefe de Estado. Todavia, tudo tinha começado muito bem. Um governo muito aberto, reunindo todas as tendências, com uma verdadeira mistura racial – incluía mesmo um branco, bastante conservador, Peter Mulder, no cargo de vice-ministro da Agricultura, uma equipa de choque para as questões económicas, e um Trevor Manuel, antigo director nacional do Tesouro e besta negra da ala esquerda, sem pasta, mas com o dever de supervisionar em conjunto. Eleito por uma coligação heterogénea, o chefe de Estado passou no primeiro teste: contentar toda a gente.
Para atender aos desejos do povo, do qual ele emana, criou uma linha de telefone directa. A qualquer hora do dia, os sul-africanos podem colocar as suas perguntas. Mas a máquina gripou rapidamente à imagem desta hot-line presidencial que nunca funcionou na realidade.
“Eu compreendo-vos”
“Um Presidente que quer agradar a toda a gente acaba por desagradar a todos”, constata hoje Jeremy Gordin, autor de uma biografia do presidente*. Durante a campanha eleitoral, Jacob Zuma vestiu todos os trajes desde chefe zulu com peles de leopardo à de defensor do patronato, passando pelos sindicalistas. A todos, pobres, ricos, brancos, negros, disse: “Compreendo-vos. Com um tal acento de sinceridade, muitos não acreditaram nele. “Parecia como um jovial e bom amigo.
E diziase que, bem rodeado, ele poderia verdadeiramente dar conta do recado. Hoje, não só não se passa nada, como o futuro se anuncia bastante sombrio”, prossegue o biógrafo e professor de ciências políticas. O estado de graça durou pouco. Logo nos primeiros meses vieram as falhas ao de cima. Os ministros e os seus gabinetes não haviam ainda se debruçado sobre os seus dossiers nem havia sequer dado ordens nesse sentido aos seus gabinetes. Resultado: os escândalos não tardaram.
Alguns aceitaram presentes de eleitores influentes, outros ordenaram a compra de viaturas extraordinariamente caras para a função que desempenhavam. Cada vez mais se instalava à cabeça do Estado e dos seus membros uma geração “bling-bling” com um estilo de vida não recomendável que não tinha nada a ver com o que apregoava, com o empenhamento demonstrado durante a campanha, nem com os fundamentos políticos do ANC, o partido do povo. Mensalmente, a corrupção e o clientelismo tomaram uma amplitude inquietante.
O último caso diz respeito ao enorme empréstimo concedido pelo Banco Mundial (2,77 biliões de euros) à empresa nacional de electricidade, Eskom, para a construção de novas centrais. A oposição denunciou vigorosamente os benefícios colhidos pelo ANC através de uma sociedade chamada Chancellor House, uma das subcontratadas implicadas na construção de uma central de carvão. O caso abriu divisões mesmo no seio do próprio partido. O tesoureiro geral do ANC, Mathews Phosa, anunciava a 10 de Abril que a companhia ía retirar o polémico contrato.
Mas, dois dias mais tarde, o director da Chancellor House, Mamatho Netsianda, desmentia essa notícia. Regularmente, a imprensa sul-africana faz eco das transacções de mercado efectuada em condições muito obscuras ou de casos de enriquecimento estranhamente rápidos dos empresários e dos indivíduos próximos da direcção do partido.
Demasiado permitido
Limitando-se a vagas promessas de luta contra a corrupção que nunca chegam a concretizar-se, Jacob Zuma perdeu a pouca credibilidade que tinha neste domínio. No final, ele dá sobretudo a impressão de que tudo é permitido. Idem em relação à luta contra o SIDA. Zuma começou justamente a ganhar confiança dos militantes graças às reformas nas políticas de saúde quando veio a lume o caso “love child”, a criança nascida fruto de uma relação extra-conjugal que Zuma entretanto reconheceu. Explicou então que era oficialmente polígamo, a melhor saída para a sua falta de fidelidade.
Para mais, este caso foi um ponto de viragem. “Há um antes e um depois de 31 de Janeiro de 2010. Esta história revela até que ponto o presidente se encontrava enfraquecido”, assegura Jeremy Gordin. E sublinha que, pela primeira vez, a imprensa inteira caiu em cima de Zuma. “Temos necessidade de um Presidente, não de um gigolô”, refere o Congresso do Povo (COPE), partido formado por dissidentes do ANC. “O seu comportamento não pode ser escudado na vida privada nem na “cultura”, há uma responsabilidade moral diante do país”, comenta, por seu turno, a Aliança Democrata.
Desigualdades gritantes
Em resposta às acusações, o chefe de Estado pede para ser julgado pelos seus resultados e não pela vida privada. Mas mais uma vez, as circunstâncias não estiveram do seu lado. Jacob Zuma chegou ao poder num contexto difícil, a África do Sul havia saído há somente 15 anos do apartheid e estava mergulhada, como o resto do mundo, em plena crise económica. Pela primeira vez em 17 anos, o crescimento económico em 2009 revelou um índice negativo (- 1,8%). Zuma havia prometido a criação de um milhão de empregos; a taxa oficial de desemprego ronda os 25%, contra os 23% do ano anterior.
O efeito Mundial de futebol é bastante limitado. E, o pós-Mundial anuncia-se ainda menos fácil, especialmente porque não há uma clara linha de actuação. O ministro do Desenvolvimento Económico, Ebrahim Patel, viu-se assim contrariado por Pravin Gordhan, o ministro das Finanças, na ideia de lançar um empréstimo nacional. Este é só um exemplo do ambiente de cortar à faca que se vive no seio do partido no poder. “Havia sangue na arena”, reconheceu o porta-voz do ANC, Jackson Mthembu, a 13 de Abril, à saída de um encontro com a Cosatu (a grande central sindical sulafricana).
O secretário-geral da Cosatu, Zwelinzima Vavi, denuncia o “materialismo crasso que assola o ANC” prevendo mesmo o colapso da coligação no poder. O ANC poderia entrar, adverte Vavi, “na sua maior crise de sempre”. “A maior parte dos quadros que temos hoje no ANC é constituída por criminosos que usam Gucci e Prada”, denuncia igualmente Din- ga Nkhwashu, advogado e membro do partido. “Há duas categorias de membros: os privilegiados e os amargurados.
Os primeiros são os que beneficiam dos favores do poder, os outros são os que subitamente perderam os seus privilégios”, esclarece. Zuma estará à altura da tarefa? “Parece-me que não”, responde Jeremy Gordin. Mas o problema ultrapassa o personagem – por mais contestado que ele seja. O partido de Mandela experimenta ainda grandes dificuldades em passar do seu estatuto de movimento de libertação para o de partido no poder.
O maior desafio destes últimos anos foi reduzir as desigualdades, nomeadamente assegurando a promoção profissional da maioria negra. Mas o Affirmative Action (a discriminação positiva) e sobretudo o Black Economic Empowerment (BEE) tiveram mais impacto negativo do que positivo. Em todo o caso é pelo que clama desde há anos Moeletsi Mbeki, economista e irmão do antigo chefe de Estado.” Ao envolver as pessoas mais pela sua raça, pela sua filiação política ou sindical, do que pela sua competência, a administração perdeu muito da sua eficácia. Quanto ao BEE, ela não teve senão um impacto: Criar uma pequena classe de privilegiados”, explica Moeletsi Mbeki.
A carta racial
Face a estas injustiças, sucedem- se os movimentos de protesto. As ruas das grandes cidades são desde algumas semanas invadidas por hordas de funcionários municipais em fúria. As greves adensam-se, e certas classes profissionais, como os condutores dos táxis colectivos, ameaçam perturbar a organização do Mundial de futebol. As tensões raciais engendradas pelo discurso de Julius Malema tornam a situação mais instável. Ameaçando confiscar as terras aráveis exploradas pelos agricultores brancos cantando “morte ao bóer”, o presidente da Liga de juventude do ANC explorou o filão que diversos responsáveis, entre os quais Thabo Mbeki, já utilizou: jogar a carta racial.
Incapaz de fornecer respostas às aspirações da maioria, é fácil fazer com que as responsabilidades dos problemas recaiam na minoria que permanece, é certo, privilegiada. Mas como já ficou demonstrado pelo exemplo zimbabweano, não se trata de fazer passar a riqueza das mãos de uma minoria para outra, embora de outra cor, para a maioria sair da pobreza. Zuma pode aproveitar-se dos holofotes sobre o seu país para passar pela melhor fase do seu mandato e transformar o teste Mundial? Em todo o caso ele decidiu que 2010 seria o ano do “acesso de todos aos serviços básicos”.
Ele pode igualmente temporizar e pedir um pouco mais de paciência aos seus eleitores. Um ano de poder é cedo para qualquer balanço. Não é demasiado tarde para fazer melhor. Restam-lhe quatro anos – talvez mais – para se tornar no chefe de Estado respeitado que ele ainda luta por incarnar. Nas fileiras do ANC, nem todos são favoráveis a um segundo mandato.
Mau grado as recentes desmentidos do secretário-geral Gwede Mantashe sobre uma conspiração interna para se livrarem de Zuma, é mais do que evidente que o partido nunca esteve tão dividido. O Conselho Nacional, previsto para Setembro, promete ser conturbado. *Enviada especial a Joanesburgo