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À quarta-feira – “Manif’s” viram rotina

Escultura - Vida difícil a de escultor

Em cada quarta-feira, num ritual cada vez mais igual, centenas de jovens desfi lam pela cidade de Maputo a exigirem qualquer coisa. De certo modo, já não estão a exigir seja o que for, que isso se perdeu na memória dos tempos e da repetição do gesto. Hoje, apenas cantam, dançam e lançam impropérios contra o Governo e quem nele manda. Por já ter ganho foros de rotina, há uma generalizada indiferença em torno deste acontecimento. Da sociedade e do Governo. Será que a sociedade se sente segura, tranquila, feliz consigo própria, ao ver estes seus fi lhos nesta situação? Será este assunto um nada para o Governo? Até quando?

Foto: Sérgio Costa
A razão fundamental para que venha a lume uma refl exão em torno deste velho problema foi o facto de a última manifestação destes jovens ter-se aproximado do local da campanha eleitoral do partido no poder. No conjunto dos esforços de levar a sua mensagem a quem acham melhor ser o destinatário, nada há de estranho em se terem dirigido àquele local e do modo como o fi zeram. Novidade e estranho é o facto de um candidato em campanha pela urbe dizer que os jovens estão com inveja da festa, “a nossa festa”. Festa do Ministro da Juventude.

 

A lucidez de Zito, cujo sobrenome não vem ao caso, ocorre quando está embriagado, algures num “senta-baixo” do Bairro Patrice Lumumba. Já não são necessárias muitas garrafas de tontonto para ele atingir aquele estado de euforia, de homem revoltado e, quantas vezes, nostálgico. Dizia ele, sábado passado, olhando para uma creche encerrada depois de o Dr. Tarik fazer desaparecer o dinheiro e as crianças voltarem ao nada, que se Samora Machel e Eduardo Mondlane estivessem vivos nada daquilo poderia ter acontecido.

Acrescentava o jovem que o maior problema de Moçambique é que ser corrupto é uma forma de vida que eleva as pessoas à categoria de heróis. “ Admiramos pessoas que roubaram muito e temos nojo dos que roubam pouco.

 

 

O mano Filipe aí paga-me duas médias, com vinte e oito meticais, e fi co contente, enquanto roubou vinte oito milhões lá no seu serviço. Com Samora não podia acontecer isto”. Dedo em riste, vai soltando algumas verdades na análise da conjuntura. Quando tiver atingido pontos mais elevados desse seu estado, o amor-próprio evidencia-se e as suas qualidades de tintureiro qualifi cado sobressaem.

Fala das cores primárias e de quantas combinações se podem fazer para obter a beleza policrómica. Com fórmulas químicas complicadas, explica as reacções possíveis de ocorrer para obter resultados associativos ou dissociativos, o tipo de conservantes ideais e os truques que ele próprio diz ter descoberto para manter cores vivas nas circunstâncias mais adversas. Fala para ignorantes, por isso o seu conhecimento não passa de delírio de mais um bêbado, a quem urge exigir o imediato pagamento da conta em divida ou alongar um patrocínio, nos dias em que os seus bolsos tenham acima de sete Meticais.

Ouvir tal prelecção vale a pena, sobretudo por se tratar de uma pessoa que se exprime com fl uência, com domínio de uma lógica argumentativa que se não pode desprezar.

Triste já se torna olhar para o farrapo humano que fala, rosto cozido pelo álcool, toda uma fi gura que parece fugir da vida e que foi rejeitado pela higiene. Aquilo que se chama não restar, ou, mais concretamente, o elixir da velhice. Pouco depois dos trina anos.

Não é ele diferente de João, de Vukane e de Mugadui, com quem arrasta a existência bebendo aguardente de cana, de adega em adega, quando tia Gilda não tem ou não está. O dinheiro com que alimentam as suas frustrações provém de pequenos trabalhos de levar lixo das vizinhanças para o aterro ou enterrá-lo algures num quintal, dar melhor rosto a algum passeio que tenha sido maltratado. Tornam a zona limpa e são eles, a troco de cinco meticais, o verdadeiro Conselho Municipal. Sem festa de campanha. Estiveram na ex-RDA. Júlio, natural de Nampula, cidade, veio a Maputo fugido do chamamento ao Serviço Militar Obrigatório. Isto quando a guerra lavrava em Moçambique. Certo dia, encontrou um conterrâneo que andava a cuidar de encaminhar jovens para a RDA, só foi um “vamos” e estava na Europa, numa fábrica de automóveis. De volta ao país, trouxe as melhores aparelhagens que a época e o socialismo de lá produziam. Trouxe mobiliário completo para duas casas e as renomadas motorizadas MZ.

Júlio nunca foi bêbado, nem hoje o é, mas vendeu tudo quanto tinha. Uma parte ao dono da dependência em que vivia, na rua do Telégrafo, aqui em Maputo, outra a tantos outros compradores. Tudo isso para conseguir comida para si e para a mulher ocasionalmente em vida comum. Com o tempo e já sem nada, foi alojar-se em casa de um parente e passou a dedicar-se à venda de sapatos à porta da Direcção Nacional de Migração. Não podendo manter padrões de vida por aí além, Júlio entrou no negócio de entregas de viaturas de Maputo para Nampula. Nem por isso fi cou menos pobre e leva duas tuberculoses no currículo. Hoje está em Caia, dono de um negócio de barracas, com relativa prosperidade. Trabalha muito, dorme mal e a saúde escasseia-lhe.

Esta é a foz de um rio de vida, o rio da vida de milhares de jovens que deram o melhor de si a trabalharem na Republica Democrática Alemã. Foram contratados ao abrigo de um acordo de cooperação entre Estados, de que resultaram benefícios em ambos os países. Na base estava que as economias da ex-RDA e de Moçambique saíam a ganhar com o trabalho destes jovens, tal como acontece com o desempenho dos mineiros moçambicanos na vizinha África do Sul.

Depois daquelas manifestações todas que protagonizaram, que vieram a dar lugar a revelações de pagamentos que deveriam ser feitos, fi ca claro que, em algum momento deste processo, houve injustiça que se não pode rotular de mero engano ou negligência de alguma estrutura. A polémica indiciou uma situação em que se ignorou propositadamente um direito que eles tinham, tal como se pode concluir à luz das decisões mais tarde tomadas e do posicionamento inequívoco do Governo alemão.

Para se atingir este nível, houve muita violência pelo meio e algumas mortes pelo caminho. Ofi cialmente, concluiu-se que o Governo nada mais devia aos jovens “magermans”, mas estes continuam a insistir nos seus direitos de segurança social e, quiçá, de outras regalias que dizem inerentes aos contratos de trabalho que celebraram na ex-RDA. Ainda que estejam destituidos de razoabilidade neste negócio, as dúvidas terão de persistir na leitura do problema, se se tomar em consideração que os tais valores que lhes foram pagos só o foram após derramamento de sangue. Não fora isso, nada teria acontecido. Logo, somos forçados a concluir que se impõe aprofundar a análise do problema para se sair desta complicação de uma vez por todas.

Sociedade moçambicana, homens e mulheres! Será que não se nota que estes jovens que vegetam naquela praça e que desfi lam com cânticos de raiva e ódio são vossos fi lhos? Serão estes jovens já envelhecidos meros marginais que se unem apenas com o propósito de perturbar a paz social? De acordo com o ponto de vista da sociedade civil, a admitirmos a sua existência, devemos fi car, de facto, indiferentes perante esta situação que se repete em cada quartafeira? Como pode a sociedade civil ignorar um assunto que afecta milhares de famílias, se a sua função deveria ser a de congregar todas as preocupações, dar-lhes legitimidade ou tirá-la de acordo com avaliações de mérito ou não?

Se tomarmos em conta que, efectivamente, o Governo já nada deve a estes jovens, então estamos perante um outro problema. Há gente a desfi lar semanalmente sem motivo, a fazer barulho na cidade, a insultar os governantes, a perturbar os dirigentes nos seus gabinetes, a proferir palavras que ofendem a moral pública… há tudo isso que urge acabar. A indiferença, neste caso concreto, não pode atestar qualidades superiores de uma paternidade nacional. Pode parecer arrogância. Este movimento está a crescer pela persistência e ignorá-lo não é construtivo.

As palavras do dirigente poderiam ter sido melhor escolhidas, do género de manifestar preocupação. Fosse qual fosse o ponto de vista, inclusive a atávica indiferença governativa, faltou-lhe o toque das boas maneiras de um dirigente para com a sua população, um simples apelo à calma. Mas o que fez foi chamá- los invejosos, como que a atiçar ódios. Coitados, na sua situação de abandono, só podem invejar quem os despreza e faz festa nas suas barbas. São fi lhos, primos, irmãos e sobrinhos de alguém nesta sociedade de harmonias. Neste belo Moçambique. Belo para todos.

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