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“EU JÁ NO REMEMBER XIPAMANINE”

“EU JÁ NO REMEMBER XIPAMANINE”

O mito degenerou completamente. É como se tivesse morrido outra vez o lendário Matateu, que chegou um dia – na sua única visita de reencontro com a terra – a Maputo e disse: “Eu já no remember Xipamanine”. Na verdade, quem conheceu Xipamanine, quando era Xipamanine, hoje não vai reconhecer, concerteza, aquele lugar amanhado de histórias e histórias.

 

 Xipamanine transformou-se em depósito de dejectos espirituais, onde tudo o que ali acontece é comandado pela desordem. Uma desordem debroada de crime, que está sempre latente. Há uma luta permanente nas pessoas que procuram – sem olhar a meios – um espaço para sobreviver, nem que isso venha a signifi car um atropelo ao civismo e ao respeito pelo próximo. Xipamanine já não é o mesmo destino e tudo indica que jamais voltará a ser. Este lugar depravou-se.

 

Saí de casa às 7.00 horas da manhã, com a reportagem planeada para o Xipamanine. Não peguei no guarda-chuva, embora os serviços meteorológicos aconselhassem a isso. Chovia intermitentemente devagar, com o céu a indicar que a situação podia piorar. Mas fi z-me ao caminho, mesmo assim, sem guarda-chuva.

Foto: Jeronimo Muianga
Caminhei em direcção à terminal dos “chapas”, no bairro T3 onde moro e enfi ei-me num dos pequenos auto-carros que me levaria ao meu destino. Tive que esperar cerca de meia hora lá dentro até que a lotação fi casse completa para seguirmos. Foi uma espera penosa, porque o volume do leitor de discos compactos estava accionado a um nível para surdos e o condutor recusava-se a ceder ao apelo dos passageiros para que baixasse o sinal e ninguém podia fazer nada perante a casmurrice do jovem. Não estava ali ninguém para nos proteger. Como rareiam essas pessoas na cidade de Maputo.

Continuava a chover intermitentemente e agora partíamos em direcção a Xipamanine, com o “chapa” superlotado, mesmo assim com espaço para mais passageiros, os quais, quanto mais entram, mais espaço parece haver. É espantoso! Depois de percorrermos uma parte da Avenida Joaquim Chissano – vulgo via rápida – desviamos à direita para quem vai ao Estádio da Machava, entrando para o interior de um bairro por demais degradado. A rua que nos leva ao derradeiro percurso para Xipamanine é um destroço e, nas bermas, percebe-se facilmente a pobreza instalada no interior das casas construída de madeira e zinco e outras de bloco e zinco, mas mesmo assim, lúgubres.

 

Zundapi Revocacionado

Ainda chove intermitentemente e eu estou agora no Xipamanine. Já desci do chapa e não tenho guarda-chuva. Encontro- me diante de um bar histórico chamado Zundapi, lembrando a marca de uma motorizada e trazendo à memória os tempos de mabandido e prostitutas e chulos. Esta casa mantinha-se em letargia durante o dia e levantava-se fulgurante à noite – tanto nos dias úteis, como nos fi ns-desemana – chamando para o seu bojo aqueles que encontravam naquela hora, a catarse do espírito.

Olho para o edifício que acolhia o bar Zundapi e não vejo nenhuma marca daquele tempo. O bar foi revocacionado. Pululam por ali asiáticos que ninguém sabe de onde vêm. Na varanda há bancas com bugigangas e uma barulheira tremenda que nos repele. Não fi co ali muito tempo. Dou costas a um lugar que outrora tinha a sua marca. Conhecida em todo o Maputo (cidade que hoje é também seduzida, violada e violentada).

A chuva não pára de cair intermitentemente e eu não tenho guarda-chuva, mas não importa. “Chuva civil não molha militar”. Caminho resoluto à procura dos detalhes de um desmoronamento que nos dardeja o interior. Xipamanine está pejado de gente e de carros. O trânsito automóvel é um caos. Caminhar a pé também é um caos, porque os passeios estão literalmente ocupados pelos vendedores, baldeados do mercado compactado com mercadoria e vendedores e compradores e “aves de rapina”.

Nos passeios vende-se quase de tudo, sem se respeitar as normas mais elementares de higiene, incluindo o pão, depositado em grandes caixas de madeira, colocadas no chão empapado. As mulheres não param de gritar: a mapawa halenu (aqui tendes pão). Mas pouca gente se importa com o pão, que existe aos magotes em todo o lado.

 

Olímpia Esbatido

Continua a chover intermitentemente e agora estou “cara-acara” com o Cinema Olímpia. Dou costas a um grupo de senhoras enfi leiradas vendendo batata, cebola, tomate, alho, várias verduras e quejandos. Rememoro os tempos dos grandes fi lmes de cowboyada, onde a luta – com o chumbo a comandar – era pelos inesgotáveis fi lões de ouro. Revejo, na minha imaginação o auspicioso desempenho de Bruce Lee, de Alexandre Fu Cheng. Das enchentes dos moradores de Xipamanine, que repetiam o mesmo filme mais de dez vezes.

Todos os dias o Cinema Olímpia acolhia cinéfi los insaciáveis. Oferecia-nos diversão a rodos. Mas tudo isso acabou. Olho para a fachada do edifício e toda aquela graça está esbatida. O hall é aproveitado pelos jovens desempregados para fazer alguma coisa. Vendem caixas de cartão de papel numa varanda imunda, encostados numa parede com os vidros – outrora espampanantes – mais do que partidos. Os preços dos cartões oscilam. Dependem do nível de afl ição do vendedor e da capacidade de regatear do comprador. Mas, a ferida que dói muito no meio disto tudo, é aquele esplendor do Olímpia, mais do que fossilizado.

Xipamanine era também o Cinema Olímpia, ou seja, não se pode falar da história de Xipamanine sem se evocar aquele espaço de cultura, durante algum tempo alugado pela Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) e agora abandonado a favor do diabo.

A chuva ainda cai devagar. Intermitentemente. Mas as pessoas não desistem de viver. Vão ao encontro dos escolhos e derrubam-nos. Continuam a levar a sua vida normalmente, não em função da chuva, mas em função da necessidade de viver. E eu estou ali: perante um mito destruído. Em presença das lembranças de um tempo que não voltará jamais: Xipamanine!

Foto: Jeronimo Muianga
Agora vejo um enorme curral que se estende num espaço roubado à liberdade de circulação das pessoas. Xipamanine já não tem espaço para nada, nem para encaixar uma agulha. O enorme curral alberga cabritos e ovelhas, trazidos de Tete, Chicualacuala, Gorongosa e outros lugares, para serem vendidos aos urbanos deste grande canto cosmopolita.

Os animais custam os olhos da cara. O preço mais baixo do cabrito será fi xado em 800 meticais e o animal que custa esse valor é esquálido. E se se quiser uma peça desembolsase aproximadamente 1500 meticais ou um pouco mais e os jovens, que fazem esse negócio, não estão para brincadeiras. Vê-se no seu semblante o endurecimento de carácter. O dinheiro custa a chegar-lhes às mãos.

As ovelhas são muito mais caras, a mais barata vai ser vendida quase a dois mil meticais e a mais cara pode atingir os três mil. É um negócio que rende, mas que inspira muita paciência: paciência trás vitória.

A chuva intermitente não quer parar e já comprei um guarda-chuva, que me custou a única nota que trazia comigo no bolso. Procuro agora aquelas senhoras – gordas na sua maioria – que, por volta da hora do almoço, todos os dias, sentavam-se no chão com as pernas abertas e entre elas – as pernas – uma enorme bacia cheia de salada de alface. Comiam tagarelando com a boca cheia, rindo-se a bandeiras despregadas e batendo, como boas comadres, com as mãos para celebrar uma graça. Eram felizes. Falavam mal umas das outras, mas sem maldade, apenas para gozar a vida, porque falar mal dos outros, será também uma forma de gozar a vida. Procurei por essas senhoras e não as encontrei. Esgravatei por todo o lado e… nada.

Foto: Jeronimo Muianga
Perscrutei a alegria das vendedeiras para ver se sentia um fiozito daquele tempo e… também nada. Não há alegria no mercado, não há salada de alface no mercado, não há pernas abertas das senhoras com bacias aviadas. Nada! Tudo isso se esboroou. O semblante das mulheres que hoje vendem no Xipamanine não nos fazem lembrar o mito, a história. Ali, agora, tudo é feito com desconfi ança. As mulheres de outrora também se foram com o tempo, com o mito, com a alegria de… vender.

Também são as mulheres que trouxeram outra modalidade ao Xipamanine: a venda de carne fresca, de vaca, de porco e de cabrito. Elas fazemno marimbando-se para as condições de higiene exigidas naquele tipo de actividade. O local acondicionado para isso, parece uma caverna. Quando se entra ali, ergue-se imediatamente a sensação de que o oxigénio rarefaz-se. As lonas que cobrem o “pavilhão” tornam o espaço bastante sombrio, impregnado fortemente pelo cheiro de carne fresca, a maior parte dela com um aspecto convidativo. Mas as pessoas sensíveis poderão voltar para casa sem comprar nada. As senhoras que estão ali a vender pisam o chão lamacento, com vermes à mistura e, quando se pensa nisso, alguém pode recuar e procurar os talhos, onde a conservação da carne tem outros cuidados.

 

Labirinto do Sofrimento

É isso: agora a chuva parece ter parado de vez e eu arrependome de ter comprado o guarda- chuva com a única nota que trazia comigo no bolso. Podia usá-la para outros fi ns, para além de que aquele bem vai-me incomodar agora que já não chove.

Tenho o guarda-chuva no regaço e a algazarra do Xipamanine põe à prova a nossa capacidade de sofrer porque, estar ali no meio daquele bulício, é um autêntico suplício. É preciso habilidade e equilíbrio para não se pisar bens alheios e pagar caro por isso. Os vendedores têm permanentemente os nervos à fl or da pele. Estão frustradas com as difi culdades diárias que encontram na procura da vida e quem os beliscar, arrependerse- á de ter nascido.

A chuva continua presa nas nuvens. Não cai. Agora embrenho- me na zona onde se vende roupa nova e usada. Aquilo é um labirinto indecifrável. Quando se entra, temse difi culdade em encontrar o caminho da saída. Precisa-se de guia, caso contrário darse- á muitas voltas sem divisar a estrada, engolida numa zona de mito, ferido e morto.

Aqui também os preços são regateados, porque os vendedores têm que levar pão para casa para alimentar os filhos. E, se uma peça custa 100 meticais, pode baixar para metade, dependendo da hora do dia e do nível de afl ição do vendedor. São vendedores maioritariamente jovens, que não conseguiram ir por um determinado caminho, encontrando aqui a alternativa: mais vale um pássaro na mão do que dois a voar.

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