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A ntyiso wa wansati – Madalenas e outras delícias

Graças a Marcel Proust, o mundo inteiro ficou a saber o que era uma Madalena. Este escritor pleno e poderoso que sofria de asma desde os nove anos e não suportava barulhos nem cheiros, deixou-nos um legado eterno com a sua obra. Poucos escritores como ele trabalharam de forma tão intensa as recordações e tão bem exploraram a nostalgia como pano de fundo de toda uma obra literária.

Se a escrita enquanto acto de criação encerra em muito a construção de uma arquitectura de história, ideias e personagens, a obra de Proust é um expoente, talvez mesmo o expoente desta teoria. É a aventura da consciência que, saída da obscuridade, atinge, através da escrita, o conhecimento da sua identidade. E é por isso que com Proust a escrita adquire uma dimensão metafísica nos tempos modernos.

A busca de felicidade absoluta escapa à erosão do tempo. O narrador persegue ao longo dos sete volumes de Em Busca do Tempo Perdido esta felicidade próxima e no entanto inatingível, nos salões faustosos da Paris afectada e burguesa, nas aventuras amorosas e na contemplação de obras de arte. Se por um lado retrata a sociedade da capital francesa no final do século, afiando a sua pena numa crónica de costumes implacável, por outro lado o escritor encontra, por mero acaso, a salvação para a sua busca com a tomada de consciência da memória afectiva, graças ao gosto de uma Madalena molhada no chá que desperta a sensação do passado e revela a própria essência do tempo, susceptível de ser fixada pela escrita.

Um escritor pode dedicar toda a sua vida a escrever livros impossíveis, já que a realidade que ele sonha e imagina é apenas possível dentro da sua cabeça. Livros difíceis, mas que nos prendem como numa teia, como os de Lobo Antunes, valem sempre a pena ser lidos, quanto mais não seja para aprendermos como os podemos ler. Por isso, cada vez que vou a uma esplanada e peço uma Madalena, agradeço a Proust toda a sua ambição e loucura literárias. Ele recorre à infância, tornando-a uma fonte de inspiração inesgotável. E por isso, a criança nervosa e frágil estará sempre presente dentro do escritor que recorda com saudade o tempo em que se deitava feliz, sem tempo para pensar no sono que estava a chegar.

A frase que abre o primeiro volume da obra intitulado Chez de coté de Swan ficou para sempre como um marco da literatura moderna, sendo citada em todas as enciclopédias e artigos: Longtemps je me suis couché de bonheur. Ninguém gosta de crescer, de acordar do sonho da infância onde o mundo é um lugar belo e simples no qual as pessoas ou são boas ou más e a vida corre sem ter que se pensar nela.

Proust conseguiu viver e escrever toda uma obra baseada nessa realidade perdida, que ele soube encontrar. E é por isso que uma simples Madalena me sabe tão bem. Ela faz-me voltar instantaneamente a esse tempo feliz que agora resgato na infância do meu filho.

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