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A mulher que abraçou a arma na sua infância

A mulher que abraçou a arma na sua infância

A história de crianças que são levadas para a guerra não é recente. Amélia José Mulau, que foi encaminhada aos 14 anos para o Centro de Treino de Nachingweia, é disso exemplo. Hoje, com 52 anos de idade, é uma das mulheres que fizeram parte do Destacamento Feminino, a ala feminina das Forças Armadas de Defesa de Moçambique (FADM).

“Ver-me aprumada foi um escândalo para muitos. Afinal, tratava-se de uma mulher, nova por sinal. Naquela altura, a mulher era relegada à cozinha e ao tanque de roupa. Eu quebrei as regras e tornei-me militar”, lembra.

Amélia Mulau nasceu em 1960, na então cidade de Lourenço Marques, actual cidade de Maputo. Durante a infância, nunca sonhou abraçar a vida militar porque o ambiente no qual cresceu não permitia que ela fizesse tal escolha. “Sou de uma família tradicional e muito conservadora, onde a mulher sempre esteve ligada à cozinha e outras actividades cuja sociedade considera tarefas exclusivas para pessoas do sexo feminino. Era impensável que uma mulher desejasse a vida militar”.

Ela só se juntou às fileiras do Destacamento Feminino em 17974 por influência de amigos. “Apareceram uns amigos (que já eram militares) que faziam parte da mobilização e convidaram-me a ir com eles para Tanzania porque lá havia facilidades para se estudar. Não pensei duas vezes e segui-os. Queria estudar”.

Amélia, sem perceber que estava a ser enganada, seguiu os amigos na maior ingenuidade. No dia seguinte, viu-se na carreira do tiro, na Matola, e por lá ficou dois dias, sendo que no terceiro apanhou um voo para Dar-Es-Salam, capital da Tanzania. Ao invés dos livros, com os quais sempre sonhou, o que ela teve foram as armas. Foi a sua maior desilusão.

“Não era o que eu esperava, mas vi que não havia outra saída. O caminho que os meus amigos tinham escolhido para mim não tinha mais volta. Restava-me apenas obedecer às ordens que me eram dadas e firmar-me na nova e imposta carreira”.

Outro motivo que fez com que Amélia Mulau se consolasse a si mesma foi o facto de ter encontrado, em Dar-Es-Salam, um elevado número de meninas que, sob promessas falsas dos amigos, agentes de mobilização, tinham sido atraídas para aquele lugar.

“Em parte foi um alívio saber que não tinha sido a única vítima das incursões da mobilização da Frente de Libertação de Moçambique. Só mais tarde é que pude entender que aquela acção era necessária para que o país alcançasse a independência”, diz.

O que ela não sabia era que tudo o que tinha vivido até aquele momento não passava de uma introdução de uma longa história que devia escrever na sua vida.

Um dia após a sua chegada à cidade de Dar-Es-Salam, onde foram recebidos por José Craveirinha, Amélia e as demais mulheres foram levadas a um encontro que seria orientado por Samora Machel. Depois, receberam ordens para ir ao campo de treinos, que ficava em Nachingueia.

Ainda na flor da adolescência, o que não esperava era que, à porta do centro de treino, lhe fosse retirado tudo o que constituía um meio para alimentar a sua vaidade, desde o cabelo, passando pelas unhas até aos objectos de adorno.

“Tiraram-nos tudo o que supostamente estava a mais, desde o cabelo, unhas, colares e mais coisas. Apenas deixaram-nos com um certo número de pecas de roupa. Foi uma desilusão total”.

Mais ainda, Amélia não sabia como iria sobreviver perante as regras impostas pela Frelimo. O mais difícil, segundo relata, é que só havia um único fardamento, o qual devia ser usado durante os seis meses de treino.

“O que eu não consegui entender é como é que uma pessoa que viveu no meio da vaidade iria usar um único fardamento durante seis meses. Lavava o uniforme de noite e esperava até secar para voltar a vesti-lo. Apesar de ser único, exigia-se que estivesse sempre limpo na formatura matinal”, recorda.

O regresso à sociedade

Após cumprir o treino militar em Nachingueia, Amélia regressou à sua terra natal, Maputo, e não teve vergonha de assumir que era militar, o que por um lado lhe valeu elogios e, por outro, o preconceito.

“A primeira vez que entrei no meu bairro ninguém quis acreditar que era eu. As lamúrias eram várias, porém, houve quem se aproximasse de mim para me abraçar e felicitar-me pela coragem e dedicação, reconhecendo a minha decisão como heróica.”

Embora o Destacamento Feminino existisse já há algum tempo, a sociedade ainda não tinha aceitado a ideia de que as mulheres também podiam, muito bem, participar na vida militar. Amélia conta que vezes sem conta apareciam pessoas que lhe perguntavam o porquê de ela não ter escolhido uma outra actividade, tal como a medicina ou a docência.

A nossa entrevistada confessa que em algum momento chegou a sentir- -se mal e arrependida, mas no íntimo sabia que estava a ser mais uma vítima do preconceito.

Mais ainda, a sua segurança era transmitida por pessoas que já vinham desenvolvendo uma visão mais ampla e moderna sobre o papel da mulher na defesa da pátria. “Para além daqueles que me humilhavam havia quem me elogiava e me encorajava a continuar a servir o meu país”.

De instrutora a copeira

Até 1978, Amélia trabalhava no Centro de Treino de Boane, província de Maputo, onde era instrutora e chefe da companhia, mas foi despedida porque discutiu com a sua superior hierárquica. Passou a trabalhar no Hospital Militar de Maputo como copeira.

“A minha comandante estava apaixonada pelo meu noivo, com o qual viria a casar-me, e inventou uma mentira contra mim. Acusou-me de estar ao serviço do regime do Apartheid e que a qualquer altura eu facilitaria a entrada daquele grupo no país”.

Aquilo chegou aos ouvidos do então ministro da Defesa, Joaquim Alberto Chipande, o qual ordem a transferência de Amélia para o Hospital Militar. Na altura, as ordens e as decisões eram incontestáveis. Foi desta forma que ela deixou de lidar com as armas.

Uma lágrima no canto do olho

Aos 52 anos de idade, Amélia tem seis filhos. Por ter servido a pátria ainda muito nova, a sua reforma chegou mais cedo. Hoje ela aufere mensalmente um valor acima do salário mínimo, com o qual sustenta os filhos, pelo menos os que ainda vivem com ela.

Amélia é da opinião de que o Estado devia reconhecer o papel que as mulheres do Destacamento Feminino desempenharam na libertação do país, bem como na manutenção da ordem social depois da independência.

“Sinto-me muito mal ao ver as condições em que as minhas colegas do Destacamento Feminino vivem. Nem parece que hipotecaram a sua juventude para lutar por este país. Ninguém as reconhece”, lamenta.

Contudo, para limpar as suas lágrimas, Amélia diz que a integração de mulheres no processo de libertação nacional foi o prenúncio daquilo que hoje mais se procura: a igualdade de direitos e género.

“Nós introduzimos a luta pela igualdade de direitos, derrubámos as barreiras sociais, segundo as quais os homens é que podiam pegar em armas e lutar pelo país, enquanto as mulheres cuidavam das crianças. Nós destruímos algumas barreiras que a sociedade impunha à mulher”.

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