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A mesma vida severa

A mesma vida severa

Na frenética luta pela sobrevivência, todos os dias, dezenas de jovens vendem a sua força física na Estação Gare dos CFM, localizada no bairro Ferroviário das Mahotas, na cidade de Maputo, em troca de uma quantia irrisória de dinheiro. Garantir o sustento diário da família é a única motivação.

Bastou os fiscais dos Caminhos-de-Ferro de Moçambique (CFM) autorizarem o início do processo de descarregamento das mercadorias contidas nos vagões, para Albino Pedro, de 24 anos de idade, predispor-se a retirar a carga em troca de um valor monetário previamente acordado entre ele e a proprietária da mesma.

Albino Pedro reside no bairro de Hulene e é natural da província de Inhambane. Veio para Maputo em 2003 na esperança de encontrar melhores condições de vida. Quando cá chegou, pediu emprego a várias instituições, mas debalde.

Por infl uência de um amigo e conterrâneo seu e depois de provar o sabor amargo da pobreza, decide dedicar-se ao carregamento de mercadorias na Gare de Mercadorias dos CFM.

“Descobri muito tarde a actividade, mas consegui superar os obstáculos da vida. Deixei para trás o sofrimento por que passava. Hoje, consigo voltar para casa com pelo menos 500 meticais no bolso, valor com o qual eu não podia sonhar quando cá cheguei”.

Albino conta que, nos primeiros dias, lhe foi difícil ambientar-se com os seus colegas, mas graças à humildade e ao espírito de trabalho, granjeou em pouco tempo a simpatia dos companheiros e dos clientes, daí que se sinta feliz.

“Tenho uma vida digna, estarei aqui enquanto não tiver uma alternativa melhor. Esta actividade rende-me alguma coisa, não é o mesmo que estar em casa”.

“Actualmente vivo com um parente, numa casa arrendada. Dividimos a renda. Graças a este trabalho, tenho bens, mobiliário, e estou a pagar um terreno, onde pretendo erguer a minha casa”, diz.

Se para este jovem a conquista do mercado e o domínio do terreno não são um grande problema, o mesmo não se pode dizer em relação a Zacarias Maulele, de 19 anos de idade e órfão de pai e mãe.

Zacarias vive no bairro de Magoanine e aponta como móbil do seu recorrente fracasso no trabalho as suas parcas forças. Embora esteja a exercer aquela actividade há cerca de dois anos, sente que ainda não conseguiu impor-se perante os outros.

“Eu não quero e nem estou em condições de medir forças com os meus companheiros de trabalho. Vivo sozinho e não tenho quem me ajude, pelo menos em relação à alimentação. Estou sem forças, a minha dieta é muito pobre. Não sei se é possível viver com 50 meticais por dia”, lamenta.

Os pais perderam a vida em 2002. Na altura, Zacarias frequentava a sétima classe mas teve de abandonar a escola porque não tinha condições para continuar com os estudos. “É muito triste a situação pela qual estou a passar, nunca pensei que um dia eu poderia estar aqui (Gare de Mercadorias dos CFM) a carregar sacos para (sobre) viver”

“Eu sinto que o meu organismo não está preparado para este tipo de actividade, mas não tenho outra alternativa. Os poucos centavos que ganho dão para comprar um pão, açúcar e arroz. O amanhã a Deus pertence, este trabalho não é seguro”, acrescenta.

Resistir a doenças

A Gare de Mercadorias dos CFM parece ter sido edifi cada só para receber carvão vegetal. A poeira daquele combustível lenhoso é um atentado à saúde dos que visitam aquele local. Mas para os “assíduos da estação”, tal não chega a ser um grande problema como se pode pensar.

É o caso de Bernardo Zitha, que afi rma que desde que começou a carregar mercadorias nunca teve problemas respiratórios ou qualquer doença associada ao trabalho que faz. “Eu vivo no meio desta poeira, inalo o pó do carvão mas nunca me queixei de alguma doença. Tenho colegas que recorrentemente ficam enfermos por trabalharem nestas condições”.

Este interlocutor, que é casado e pai de dois lhos, é exemplo de quem tomou aquela actividade como pro fissão. “Consigo sustentar a minha família, os meus dois lhos estudam”.

Por não ter tido a oportunidade de estudar, Bernardo não sabe fazer cálculos, mas “quando se trata de dinheiro eu não falho. Não fui à escola, trabalho aqui desde os oito anos. Enganam-se as pessoas que pensam que não tenho a mínima noção da matemática só por não ter estudado”.

…assim buscam a sobrevivência!

Dezenas de pessoas esperam ansiosa e pacientemente pelo comboio proveniente do distrito de Chicualacuala, província de Gaza. Ainda assim, um grupo de jovens procura posicionar- -se para mais uma renhida e titânica jornada laboral.

Enquanto o comboio se aproxima da estação, o maquinista apela, através do rádio, aos seus companheiros para ordenarem a retirada das crianças e vendedores que se espalham pela linha férrea. Paralelamente, o fiscal prepara o bloco de notas no qual regista a carga a bordo da locomotiva.

Quando são onze horas, ouve-se o roncar e a buzina do comboio misto (por transportar carga e passageiros), que anuncia a sua chegada.

“Uma guerra sem trégua”

Quando os fiscais dão luz verde para o processo de descarregamento, começa o momento da agitação, abrindo espaço para os amigos do alheio agirem. Alguns indivíduos aproveitam-se da distracção e desatenção das pessoas para subtraírem as suas mercadorias.

Este tipo de episódios é normal, segundo um funcionário dos CFM afecto à estação. “Temos o registo de todas as mercadorias mas quando chega a altura do descarregamento há sempre choros porque uma parte foi roubada. E quando assim acontece a empresa tem de pagar. Só não pagamos nos casos em que a mercadoria esteja sob responsabilidade do proprietário da mesma”.

Para contornar a situação, no acto do carregamento, os agentes dos CFM fazem um minucioso registo das cargas e os respectivos nomes dos proprietários, que é para facilitar no processo de descarregamento, mas “mesmo assim, reconhecemos que não garantimos uma segurança total, pois as pessoas ainda reclamam dos roubos e desaparecimentos de bens e mercadorias”.

As vítimas

Júlia Ndeve adquire carvão vegetal em Chicualacuala desde 2007 e revende-o na cidade de Maputo. Nos primeiros anos, talvez por ser inexperiente, foi vítima de roubos. “Sempre que o comboio chegasse aqui à estação, os meus produtos desapareciam. Nessa altura eu cava muita atrapalhada pela complexidade do descarregamento e eles (os amigos do alheio) socorriam-se disso para me roubar. Tive de contratar alguns jovens para me ajudarem a vigiar os sacos de carvão e a descarregarem-no”, explica.

Um trabalho para quem é forte

Na Gare de Mercadorias dos Caminhos- de-Ferro de Moçambique (CFM) impera, à semelhança de outros locais do género, a lei da selecção natural, onde os mais fortes e potentes é que sobrevivem ou saem a vencer. Tal signi ca que a pessoa tem de ter a capacidade para, no mínimo, levar às costas ou na cabeça um saco de carvão com um peso acima dos 50 quilogramas. Caso contrário, não há trabalho.

Diga-se, em abono a verdade, que neste processo as idades pouco ou nada dizem. Os jovens, por terem mais força do que os mais velhos, são os que mais ganham espaço. Os mais fracos regressam à casa sem terem feito nada, excepto alguns que usam o carrinho de mão para transportarem a mercadoria.

Vezes há em que, para ganharem um cliente, os “carregadores” trocam palavrões entre si e, nalguns casos, se agridem, algo que acontece sob olhar impávido dos colegas agentes de segurança.

Durante o tempo em que o @Verdade esteve no local, assistiu-se a vários cenários em que alguns jovens se envolveram em escaramuças e impropérios. Sem agentes da Lei e Ordem, as coisas só abrandam quando uma das partes da contenda se rende.

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