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Kerygma: A mentira do nosso amor

Esta, talvez, será a caligrafia mais injusta e mais triste que virá de mim. Escrevo-a contra a minha vontade. Redijo-a contra mim mesmo pois, nesta semana da Páscoa, gostava de falar de coisas bonitas. Escrevo-a contra os meus princípios artísticos e poéticos. Escreva-a com dor. Cai- -me sangue nos olhos. Muita dor circula na minha alma. O facto de que Moçambique vive tempos difíceis já não é novidade para ninguém. Mesmo em tempos de cólera, se quisermos pensar como Garcia Marquez, há lugar para o amor. Para que nos amemos.

Porém, parece-me que o amor que praticamos nas famílias na rua, nas nossas amizades, no trabalho e, quiçá, nas nossas congregações religiosas é falso. Somos puros actores do amor onde o maior dramaturgo é a mentira. Apoiando-me em Valete, constato que nós vivemos a mentira do nosso amor. É a mentira do amor que me deixa triste. E nesta semana, presenciei uma das piores mentiras de amor que se comete na nossa sociedade. O amor que nós fingimos ter com as crianças deste país. O amor que nós blasfemamos dar às crianças de Moçambique. Na terça-feira, quando voltava do trabalho, passei por uma farmácia para comprar alguns medicamentos para o meu amigo Kelesa.

Depois de adquirir os fármacos fui à paragem do Museu a fim de apanhar um transporte para regressar à minha palhota, lá no bairro de Khongolote. Não vou falar sobre a parte do transporte porque constitui o fenómeno social que representa o Demo. Depois de uma luta demoníaca para apanhar um “my love”, já dentro do autocarro, apercebi-me de que havia um grupo de crianças a vender amendoim. Diziam para os passageiros: “Compra amendoim, tio”. Também, para as pessoas que estavam fora do “my love” diziam a mesma coisa: “Tio, compra amendoim torrado”. Minutos depois, o cobrador mandou avançar o carro. No chapa-cem as pessoas comentavam sobre aquela cena que se resumia em ver crianças, à noite, a venderem na rua. Este fenómeno não é novo, mas ganhou robustez nos últimos anos.

No dia seguinte, quarta-feira, não tomei o chapa cem para regressar à casa porque o meu vizinho, Wala, me deu boleia. Ontem, quinta-feira, repetiu-se, noutros moldes, a história da terça-feira. As crianças estavam no mesmo local a vender amendoim torrado. Contudo, já eram 8 horas da noite. Antes de apanhar o chapa cem fiquei a olhar para o movimento das crianças. Observei como elas convenciam os adultos para que comprassem o amendoim torrado. Depois de 30 minutos a observá-las, chamei uma delas.

No lugar de uma, vieram três. Empurravam-se para que eu pudesse escolher em quem comprar. Na verdade, eu não queria comprar nada. Apenas queria saber a razão de estarem sempre naquele local a vender amendoim. Obviamente, a minha preocupação era parva. As crianças estão naquele local porque são necessitadas. Propositadamente, perguntei se elas estudavam. Uma delas, refilona, persuadia as outras para voltarem ao local onde estavam porque eu estava a empatar o negócio. Para convencê-las disse o seguinte: “Vou comprar todo o amendoim”. Perguntei quanto custava o amendoim que estava nas três peneiras. Fizeram as contas. E, paguei.

Elas dividiram o dinheiro entre si e convidei-as a um jantar nas barracas do Museu. Elas aceitaram. Enquanto comíamos, eu fiz a pergunta seguinte: “Como é que vocês vieram parar aqui?” O silêncio tornou-se um catalisador para a digestão do nosso jantar. Jorge, a criança mais velha, contou a história toda. Por ser triste e longa, resumo-a. Jorge e os seus companheiros são oriundos do distrito de Massinga. A tia Anita que vive aqui, na cidade de Maputo, foi para Massinga e, de forma voluntária, convidou-as a virem estudar na capital. Com brilho nos olhos, os seus familiares aceitaram.

As crianças vieram para Maputo convencidas de que iam estudar. Chegados aqui, a tia “mudou de disco”. Ao invés de lhes proporcionar as condições para irem à escola faz das crianças vendedoras de rua. Elas têm de vender amendoim torrado nas noites e entregar a receita toda à tia Anita. Tornaram-se na máquina de fazer dinheiro da titia. Ou seja, elas estão a ser instrumentalizadas e marginalizadas. Este é o filantropismo metaforizado na mentira do amor que temos pelas crianças.

Depois daquele desabafo elas tinham de voltar ao cativeiro da tia Anita. Por volta das 11 horas da noite, elas despediram-se. Eu pedi um abraço e uma delas ainda gozou comigo: “Você tio quer abraço de um molwene e menino de rua como eu?”. Ri-me da piada e o abraço aconteceu na maior alegria. Jorge e os seus irmãos de batalha foram tomar o chapa para Magoanine. Eu continuei na paragem esperando o último machimbombo para ir à minha palhota. Enquanto esperava pelo machimbombo muitas perguntas povoaram o meu imaginário.

A mentira do amor pelas nossas crianças já não é vergonhosa. É demoníaca. Este fenómeno das crianças a vender na rua à noite é desgastante. Quantas tias Anitas – não quero dizer que os homens estão isentos – fazem isso em Moçambique? Quantas tias Anitas que aliciam as meninas para serem empregadas domésticas, prometem escola e tornam-nas em escravas do sexo? Aliciam, em nome do amor benévolo, as crianças para torná-las servas de um ego azedado. Não será este um modelo de tráfico e abuso de crianças que Moçambique finge que não vê?

Samora Machel terá de ressuscitar para testemunhar que as crianças já murcharam porque foram transformadas em árvores para retirarem madeira que dá um lucro animador? Isto deixa-me triste. Ver as crianças do meu país a servirem de combustão para alimentar alguns egos. Desculpem-me pelo texto sobre a mentira do nosso amor. Mas esta é a mentira que nós cultuamos.

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