O cão surgiu do manto escuro da noite, como se viesse do nada. Despreocupadamente, dobrou a esquina farejando o lancil da rua esburacada. A noite já não era criança, estava muito adulta e começava a entrar para a terceira idade: a madrugada. Àquela hora em que todo o mundo hibernava, só o cão ambulava, impune, no labirinto urbano.
Na verdade, não é que esti vesse completamente sozinho, mas era a criatura mais visível nos disfarces de penumbra que a madrugada veste. Quando entrou para a rua, os morcegos agitaram-se anunciando a chegada.
O luar há muito que tinha os holofotes para ali virados. Dos quintais, os cães domésticos começaram a ladrar, marcando território. Com um alheamento de quem não tem muito com que se preocupar, o cão vagabundo ignorava e conti nuava a vagueagem.
Primeiro percebeu-se o serpentear da sombra a irromper do escuro da esquina. Depois veio o vulto do animal, magro, muito magro, canelas finas e a carcaça das costelas à mostra. Uma nuvem escura aureolava-o, àquela luz não se via mas adivinhava-se, eram mosquitos que o escoltavam.
O rabo, escondido entre as patas traseiras, ondulava ao ritmo lento da passada. O cão farejava tudo por onde passasse: o asfalto esburacado, o passeio, a sarjeta e os troncos mijados das árvores. Parou, indeciso. Tinha a rua toda para si. Olhou para a esquerda, para a direita, hesitando entre subir ou descer a rua.
Àquela hora, o cão vagabundo, mesmo sem coroa, era o rei da rua. Achegou-se ao muro, ajeitou a perna e urinou. Nao sacudiu, os cães não sacodem.
Esfregando-se com a pata, coçou-se das carraças da vida. O corpo e a sombra faziam movimentos gémeos, um imitava o outro. Desceu a rua e parou diante duma lata de lixo, enorme para o seu tamanho de cão.
Volteou, farejando a lata. Desaparecia na penumbra da lata, e aparecia do outro lado, focinhando o lixo espalhado pelo chão. Inspeccionou restos de comida, encontrou um osso. Lambeu-o, com voracidade de cão lambendo osso, mas não se contentou. Quem inventou que os cães se contentam com ossos? Voltou a coçar as carraças da vida. Ergueu a cabeça.
Por algum tempo olhou desafiadoramente para a lata, gigante para o seu tamanho de cão. Ao primeiro salto não conseguiu ajeitar-se na borda da lata. Ao segundo, quando se equilibrou, a lata cedeu ao peso da sua magreza e caiu. Virada a lata, o vira-latas pôs-se a espalhar mais lixo para o asfalto. Separou as larvas do resto dos alimentos e tomou tranquilo a refeição.
Erguia em sobressalto o pescoço comprido, quando um estalido cortasse o silêncio da noite. Virava a cabeça pa lá e para cá inspencionando o perigo, e voltava à posição tranquila, para a sua refeição. No céu, as estrelas, muitas, pareciam as borbulhas da sarna que não o deixava quieto.
Voltou a coçar-se das pulgas e carraças da vida. Mais forte que as luzes da rua, o luar prateava-lhe meio-rosto. Os olhos de brilho tí bio, por trás do focinho escuro e húmido, escondiam um olhar sem expressão. A pelagem de cor puída, sarnenta, não disfarçava no corpo magro, o contorno do esqueleto exposto sob a pele.
Quando, mergulhado na podridão do lixo e da vida, saboreava sofregamente a refeição que disputava com as larvas, ouviu uma pedra ricochetear no chão e quase o acertar, ao mesmo tempo que a voz de um guarda nocturno, irritado com tanto lixo espalhado, gritava:
– Suca daqui, cão!
Deu um salto ágil, soltou um ganido, senti ndo a quase dor pela pedrada que quase levou. O que doeu mesmo foi a refeição interrompida.
Parou, tentando entender o mundo para além do irracional entendimento de cão. Olhou para o nocturno guarda que o apedrejara como se lixo tivesse dono. Por detrás do focinho húmido, o rosto inclinou-se docilmente para um lado, depois para outro, com um olhar terno, quase suplicante.
– Suca! – repetiu em resposta, o guarda. Antes que viesse outra pedrada o cão reti rou-se. O cão é o melhor amigo do homem e sabe que o homem é seu melhor amigo, por isso o acaricia com pedradas. Entre si, os homens também se amam às pedradas.
O cão sorriu, um sorriso iluminado de ironia. Com uma serena dignidade, abaixou-se, recolheu algum lixo como se recolhesse cacos de auto-estima, meteu no saco cheio de bugigangas que pendurou no ombro e desapareceu no escuro da noite, seguindo um incerto desti no, destino de cão, cão humano.