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“Xitique”

“Xitique”

Viver com dinheiro dos outros

Nascido da necessidade de fazer face às elevadas despesas para as quais individualmente não se tem disponibilidade fi nanceira, o xitique reforça também o convívio e a solidariedade entre colegas de profi ssão, amigos ou familiares.

 

Ana Matsinhe é, desde 2004, cobradora ambulante de “xitique”. Na verdade ela é um banco informal móvel, onde os comerciantes formais e informais, que tomaram de assalto os passeios da baixa da Cidade de Maputo, depositam diariamente um certo valor fi xo durante 31 dias, sendo que o valor referente ao último dia reverte a seu favor. Não se sabe, no entanto, quando e quem teria inventado esta forma de ganhar dinheiro. O certo é que muitas pessoas vivem do xitique espalhadas por esse país fora. Foi depois de uma longa e forte insistência que a dona Ana, como prefere ser tratada, aceitou falar à nossa reportagem. Como todos podem imaginar, a razão da sua renitência é explicada pelo transporte de avultadas somas de dinheiro. Para ela eu poderia fazer-me passar por jornalista quando na verdade tinha outras pretensões. Só com a intervenção de um amigo nosso, que é seu cliente, dona Ana falou ao nosso jornal. Dona Ana contou que se iniciou naquela actividade (cobrança de xitique) em 2004, quando o negócio de que dependia faliu. Era vendedora de diversos produtos alimentares no Mercado Jenete (Cidade de Maputo). Vendo-se já desempregada e sem nenhuma fonte de rendimento para o seu sustento e da sua família, achou que desta forma podia ganhar a vida. Dito e feito, entrou em cena e deu-se bem. Explicou que o valor de contribuição diária, por pessoa, é fi xo. Depende da capacidade de cada contribuinte, havendo, porém, pessoas que chegam a fi xar a sua contribuição diária em dois mil meticais. “Cada pessoa fi xa o valor da sua contribuição diária e contribui durante 31 dias.

 

O dinheiro do último dia é meu”, sustentou. Para um melhor controlo, cada contribuinte tem um cartão que vai do dia 1 até ao 31, o qual ostenta um número individual de registo. Não está vedada a possibilidade, segundo explicou, a um contribuinte que, por qualquer motivo, solicitar pagamento antes de fechar o cartão, sendo que o valor do último dia reverte sempre a favor dela. Dona Ana conta actualmente com pouco mais de 500 contribuintes. Investimentos Para rentabilizar o capital à sua guarda, Dona Ana faz investimentos em diversos estabelecimentos comerciais da sua pertença, para além de conceder empréstimos rembolsáveis com juros acrescidos dependendo do montante concedido. Depois de nada, Dona Ana pode hoje ser considerada uma “senhora da mola.” Mesmo sem avançar o seu rendimento mensal, refere que ganha bem, sendo hoje proprietária de quatro chapas, de um camião de transporte de cargas e de diversos estabelecimentos comerciais.

 

Riscos

Clientes de Dona Ana abordados pela nossa reportagem asseguram estar cientes dos riscos que correm, embora tenham a sua residência e seus bens bem identifi cados. “Estamos cientes dos riscos, porque um dia ela pode sumir com o nosso dinehiro, mas enquanto não sumir ajudanos a acumular o pouco que ganhamos”, realçam. Para depois, observarem: “No dia em que o negócio falir ou os camarários confi scarem os nossos produtos, não termos como reavê-los.” Dona Ana, por seu turno refere também estar consciente dos riscos que corre, sobretudo com os meliantes. A este propósito, contou, em jeito de má recordação, que no ano passado sofreu um assalto à mão armada em plena via pública, numa operação em que os amigos do alheio, fazendose transportar numa viatura, apoderaram-se de cerca de um milhão de meticais. Mas este estrondoso roubo não a fez desistir. Continuou com a actividade, tendo já ressarcido os valores aos proprietários.

 

 
Xitique familiar

Existe, porém, um outro tipo de “xitique”, este sem fi ns lucrativos. É feito entre amigos ou familiares, chegando até a formar-se associações ou núcleos. Este tipo de “xitique” tem como objectivo promover visitas regulares, uma vez que se trata de encontros que têm lugar nos fi nais ou princípios de cada mês, funcionando sobretudo como convívio. A escolha da casa é rotativa. Durante os encontros entre elementos do grupo são debatidos vários assuntos relacionados com a vida familiar, sempre acompanhados por uma refeição e música à mistura. Para o efeito, as pessoas envolvidas fazem uma contribuição, ou em dinheiro ou em produtos. Contudo, algumas famílias entregam uma contribuição (em dinheiro) que é depois depositada no banco. O dinheiro destina-se para fazer face a qualquer situação que, esperada ou inesperadamente, poderá acontecer com qualquer membro do grupo, como falecimento, doença, casamento, entre outras ocorrências.

 

“Uma forma de reconhecimento e de poupança”

O sociólogo Arlindo Chongo vê este fenómeno como um reconhecimento de que ninguém consegue fazer algo de relevante sozinho, sendo esta tese extensível aos diferentes tipos de xitique. No seu entender, precisa-se sempre do apoio de terceiros, sendo que o xitique é uma forma de ajuda mútua, que ultrapassa um apoio fi lantrópico. Chongo vê ainda o xitique como uma forma de poupança, a qual tem duas componentes: a realização de despesas signifi cativas e o adiamento de outras. Portanto, para quem tira dinheiro está a adiar certas despesas e para quem recebe está a realizar despesas que sozinho não poderia realizar. “O xitique é também uma espécie de poupança compulsilva, porque basta entrar no grupo para se estar a assumir um compromisso, por isso tem que se passar a conter as despesas para poder cumprir com o xitque, para quando chegar a sua vez receber e fazer alguma coisa relevante com esse dinheiro”, realçou. “Há coisas imprevisíveis que sucedem dentro da família e para que haja garantia de atendê-las, porque por vezes nos encontaram fi nanceiramente desprovidos, as pessoas conseguem ultrapassar as difi culdades com o dinheiro de xitique”, acrescentou. Para Chongo, não é, porém, qualquer pessoa que entra no xitique. “São grupos fechados em que os seus membros são obedientes ao grupo.” Segundo Chongo, mesmo o xitique com fi ns lucrativos, é constituído por um grupo de pessoas que convivem muito, já que muitas vezes vendem o mesmo tipo de produtos. A componente festiva, que é por vezes enquadada no xitique, o nosso interlocutor vê como sendo uma forma de promover visitas entre elementos do grupo, tornando-o mais sólido. “No xitique há momentos de comemoração não só pelos êxitos fi nanceiros, mas porque o grupo não se desfez e isso signifi ca que há uma tolerância dentro do grupo. Quer dizer, o grupo comunga os mesmos ideais.” “Quando chega a hora de receber há sempre uma pressão por parte dos membros do grupo sobre o que fazer com o dinheiro”, observou Chongo.

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