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Xïkwembo – Teatro paixão

“O artista age como um ser mediúnico que, para além do tempo e do espaço, procura o seu caminho através de uma clareira.” Guardo esta frase desde a minha formação em teatro. Porque é que a guardo, não sei… talvez porque na verdade nunca a entendi… Celebra-se o dia mundial do teatro.

E eu estou descansada. Sim, porque esta é a prova de que estamos preocupados, e mundialmente! O teatro tem um dia. Tal como tem a mulher, a criança, o animal, a igualdade social, etc., etc. E se se preocupam, é porque estamos de facto em perigo! Mas a verdade é que, pelo menos olhando para Moçambique, não é perigo de extinção.

O teatro é muito, é forte, é amado. Por vezes quando trabalhava em Portugal nós perguntávamo-nos, nós, os fazedores de teatro, e refiro-me a encenadores, actores, dramaturgos ou críticos: – Se fizéssemos greve, acham que alguém se aperceberia? Tendo em conta a quantidade de espectadores que o teatro tem… duvido. Sim, eu também duvido, mas aqui, aqui eu acho que a integridade física dos criadores ficaria seriamente comprometida… se por uma semana que fosse se fechassem as portas de todos os teatros haveria motins! Motins como o que eu vi no dia de uma estreia atrasada um bom par de horas, em que o público agitou e quase partiu a porta de indignação.

Eu fiquei impressionada, leia-se “muito bem impressionada”, com o público moçambicano, é assim mesmo, pelas coisas importantes é que vale a pena perder a cabeça!! Aqui vive-se o teatro. Com intensidade, com força, quase com fé. Eu faço teatro, há muito tempo que o faço. Mas sempre que paro por um, dois, três meses, sempre que isso acontece é com muitas reticências que eu digo … sou… actriz… é uma espécie de medo de não merecimento… para mim o ser actriz não é profissão, formação, não há contrato ou projecto que o defina, para mim é um estado… e um estado mediúnico.

Sim, de comunicação com algo maior. Não digo que seja religioso, mas é certamente mágico… Por isso não são os anos de brincadeiras de infância e juventude nos palcos, nem os de formação superior nas escolas, nem os de experiência profissional nos teatros e na tela, não, isso para mim de nada vale porque nada existe nem tem importância, nem é para mim teatro se não acontecer no estado, aquele, o de veículo das vontades dos deuses. Saí de Portugal há uns anos e com a pátria deixei também esses caminhos, pensava. Estava a um mês de estrear um espectáculo, o texto já sabia de cor, os movimentos na cena já os desenhava e tudo o que rodeia o trabalho do actor estava já a tomar forma.

Trabalhei tudo com o fervor de quem fica e depois fui. É mesmo assim, teatro é a arte da acção, do agora, e só aí acontece, não existe amanhã, seu mundo é hoje. E saí bem, viajei, olhei novos povos, estabeleci novas pontes com os mundos. Viajava bem e feliz, coração apartado da paixão mas coração sossegado e seguro. Até chegar lá, ao teatro mais antigo do mundo, Epidauro… aí voltou o calor excitado da paixão, o ciúme nervoso de uma dúvida: “e se não sou feliz sem ele?” Mas escondi a dúvida nas rugas marcadas de uma careta de riso. Mais mundos vivi, e muitas voltas dei, e poucas vezes repensei o amante abandonado. Segui em frente, é o único caminho que conheço.

São tortuosos os caminhos e misteriosos os destinos – vim dar aqui. Moçambique. Aqui de novo encontrei o amor e os seus sinais. Cheguei no início do ano, e preparavase um espectáculo, assistia aos ensaios – para as almas apaixonadas preenche o vazio assistir à prática alheia – sentada na plateia partilhava os jogos no palco, e no dia da estreia subi. Surpreendida, insegura neste perdão aberto que a paixão abandonada me concedia. E aí me reencontrei.

Num teatro sem mecanização ou repetição fria, criado em colectivo, vivido em interacção com o público, olhando e falando sobre as questões verdadeiras das pessoas vivas, com corações ainda quentes no peito. Muitas vezes quando falamos da produção artística falamos da função, a arte não tem função, não serve para nada. Para mim serve para isto…

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