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Xïkwembo -Da vergonha

A vergonha é para mim um sentimento… misterioso. Não falo da vergonha encabulada da infância, quando somos apanhados em falta. Ou do nervoso que faz o sangue subir com mais intensidade à face e nos aquece as bochechas.

Falo da vergonha como um sentimento forte, ácido, contundente por vezes, que nos faz ter dificuldade em levantar a cabeça, em olhar os outros nos olhos; que nos impede de falar livremente das nossas próprias acções, sem medo de censura ou desaprovação. Porque acho estranho, mesmo bizarro, que eu possa sentir vergonha de algo que fiz. Se fiz é normal, mesmo que agora fizesse diferente, mesmo que tenha outra opinião e gostasse de mudar algo, na altura foi assim, nada a fazer.

E na verdade o que posso mudar agora, a minha acção é essa, não é ter vergonha do passado mas fazer diferente. A vergonha, com excepção dada à naïfe charmosa da tenra idade, é sentimento inútil. Não serve para nada. É sentimento cobarde, que nos impede de agir no agora. Mas claro que eu já senti vergonha, sim todos nós sentimos. Mas a vergonha faz-nos esconder, impede-nos de enfrentar, leva-nos a mentir. Vejamos um exemplo concreto, nas situações de violência doméstica as vítimas começam por desculpar os agressores. São comuns as contextualizações elaboradas e emotivas das acções frias e secas que sofrem.

E justificamos, elaboramos, enganamo-nos, protegemos quem não merece protecção. Namorávamos há bastante tempo e eu era muito nova não pude fazer nada e… Ele era carinhoso mas um dia ficou muito nervoso com uma situação no emprego e… Casámos muito cedo e… Ele nunca tinha tido nenhuma atitude de violência mas… Ele era muito calmo mas quando bebia ficava completamente diferente e… Ele pensava que eu tinha outra pessoa e descontrolou-se… Ele era muito inseguro e tinha necessidade de mostrar o seu poder em frente às outras pessoas e… Ele bebia e… Ele acompanhava-me até à escola e ficava à minha espera no portão, e não podia ver-me a falar com colegas senão…

E… ele deu-me uma chapada; perseguiu-me; bateu-me com o cinto; afastou-me da família; apertou-me o pescoço; ameaçou-me com uma faca; atirou-me ao chão; rapou-me o cabelo; torceume o braço; atirou-me pelas escadas; fez chantagem comigo; insultou-me; rouboume o meu filho; arrombou uma porta na minha cara; deu-me pontapés; bateume quando estava grávida; violou-me; proibiu-me de trabalhar; ridicularizou-me frente a estranhos; fechoume em casa; proibiu-me de falar com os amigos; bateu com a minha cabeça na parede; retirou-me o dinheiro; queimou-me com um cigarro; pisou-me; bateu-me enquanto eu segurava o meu filho; caluniou-me junto a meus vizinhos; destruiu as minhas coisas; humilhoume…

Raramente as acusações são feitas assim, crua e secamente. Na maioria das vezes as atenuantes somos nós, as vítimas, que as apresentamos mas invariavelmente a frase acaba com “bateume”. Sim, ele bateu-me. Mas sou eu, a vítima, que construo a frase com “mas” e “se” e justificações para o acto dele. Porquê? Porque tenho vergonha. EU tenho vergonha de ter sido agredida. Faz sentido isso? Mas sim, claro. Eu tenho vergonha porque eu o escolhi, porque eu não tenho coragem de denunciar, de ir embora, de fazer queixa à polícia, de acabar com o abuso. E é aqui que começa o poder do agressor, o poder que eu, vítima, lhe dou, de manipular o que eu sinto por dentro, o que eu sinto em relação a mim.

Muitas pessoas são abusadas e não denunciam porque elas têm vergonha. Sim, também têm pena muitas vezes do amor que não resultou, medo de não ter mais hipóteses na vida sozinha, têm falta de opções de sobrevivência, e nenhuma independência económica, falta de compreensão por parte dos familiares… mas muitas vezes somos nós, as vítimas, que nos colocamos nessas situações, somos nós que nos escondemos, que não contamos, que nos afastamos das pessoas que nos são próximas, que desculpamos e justificamos as acções injustificáveis. Porque temos vergonha.

E muitas vezes ele também tem, ele, depois de exposto e denunciado tem vergonha. Mas tem vergonha de que se saiba? Devia ter vergonha sim, mas vergonha de fazer. Por isso eu agora conto. Digo tudo, a toda a gente, exponho o que dizem ser a nossa intimidade e que se deve preservar, não importa! Nada é íntimo, deve-se partilhar. E embora em muitas facetas da intimidade esta afirmação possa ser questionável nesta não é: se és abusada conta, diz, expõe. Não guardes. Não tenhas vergonha.

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