Quando saí de Portugal saí da família. Do grupo dos amigos, da partilha dos colegas do trabalho, da familiaridade dos conhecidos. Saí. E saí sozinha. Trouxe comigo a instabilidade de uma paixão e a dedicação incondicional de um cão. Só.
Talvez só quem está no estrangeiro, sozinho, sabe do que falo. Só esse sabe da misteriosa doçura que tomam as questões familiares, que na terra natal eram amargas. Talvez só esse saiba o que sinto quando estou de visita e se aproximam os amigos que não via desde os 15 anos e com os quais lá na terra nunca falava. Só esse sabe a vontade repentina de ir aos encontros foleiros da turma que quase esquecemos. Só esse pode saber como a saudade nos ataca quando menos esperamos, e toma forma nas coisas mais surpreendentes.
A mim atacou-me em viagem: num salão do Botswana o cabeleireiro sul-africano ouve Dulce Pontes e eu, enquanto me lavam o cabelo, começo a chorar, assim mesmo, sem pensar, sem gostar mesmo da música que toca, apenas sentindo numa zona indefinida do eu a intraduzível saudade. Mas a verdade é que nem lá nem cá, em nenhuma parte existe isso a que se chama companhia, aquela que mata a solidão.
Todos estamos sozinhos, nascemos assim, assim morremos e pelo caminho… pelo caminho vamo- nos enganando. Podemos enganar-nos, claro. Dizer a nós mesmos que estamos em companhia. Com os pais, os irmãos, os maridos, as namoradas, os bradas. Em África as famílias são grandes, são alargadas, o primo é irmão e a amiga da mãe é sempre tia. São maiores e mais presentes, mais activas nas vidas de cada um de nós, mais envolvidas, mais solidárias…
Quando cheguei a África cheguei sozinha, com um apoio frágil, quase quebrado, e vinha cada vez mais consciente da solidão que nos acompanha – ela sim nossa única companhia – a cada um de nós. Mas não minto, quando a minha empregada se mostrou preocupada pela primeira vez comigo, quando me ferveu ervas para o chá, quando me fez matapa por saber que era meu favorito, quando me perguntou pela saúde, quando mentiu para me proteger, quando me veio trazer à saída o casaco por achar que estava frio, quando me disse que ela era agora a minha mãe – a minha mãe africana, eu senti-me melhor.
Quando as minhas bradas, apenas conhecidas de ocasião, me ligaram preocupadas, quando me receberam em casa, quando me levaram aos almoços e festas, quando me apresentaram à família, quando me ofereceram quarto e mimo, eu senti-me melhor. Quando o homem com quem posso partilhar as coisas do prazer, do lazer, do amor, se lembra e se dedica aos pormenores íntimos de uma preocupação, de uma vontade de protecção, de uma presença quente e intensa, eu sinto-me bem.
A mente é apanhada quase de surpresa com o presente e o corpo, fraco, logo amolece, descontrai em sorrisos e apetece abraçar o mundo. E eu sentia que começava a ter companhia. Começava a enganar-me nas formas da proximidade. Devagarinho começava a encontrar uma família em África. Uma mãe, muitos bradas, irmãos e irmãs. Já havia merendas, que recebia; e capulanas guardadas para mim, numa casa. Havia convites para almoços de domingo e um lugar guardado nas festas fora da cidade. Havia.
Um dia destes ligou-me uma mãe. Ouvi as preocupações dedicadas e maternais e senti a saudade da mãe que tenho longe e senti desejos de fertilidade que nem sei se me assiste. Porque parece tão constante, tão incondicional a ligação de mãe. Estou em casa e como uma massa feita por mim, por razões misteriosas para mim não é o tempero, os ingredientes, o tempo de cozedura ou o capricho da receita que fazem diferença no que saboreio. Não, para mim o apetite é… companhia.
E as papilas gustativas parece que se negam a participar em refeições a só, e tudo me sabe… ao mesmo. Estou sentada a ver um espectáculo e resisto a encostar o meu ombro na pessoa que está a meu lado, resisto a pedir atenção, carinho, conforto. Porquê? Porque ele não existe. Só o imaginamos. E estamos sozinhos, todos nós. Mas podemos estar sozinhos nós os dois, juntos.
Hoje não é assim: estou sozinha, sozinha.