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“Viram o diabo em mim que tenho a doença de Cristo”

“Viram o diabo em mim que tenho a doença de Cristo”

No lançamento da sua nova obra, Na Mão de Deus, sobre a mediunidade, a célebre escritora africana, Paulina Chiziane, revoltou-se contra a falta de análise e comparação das Escrituras Sagradas – inclusive, por parte dos cristãos – em relação à vida social. Disse que passou por situações similares às experimentadas por Jesus Cristo. No entanto, “porque é que a mim não dizem que tenho Espírito Santo?”

Se os fenómenos mediúnicos são complexos e – ainda que familiares a todas as sociedades – de difícil compreensão, então, Na Mão de Deus é uma literatura recomendável.

É que apesar de que se trata de acontecimentos que “se narrem, se descrevam, se dramatizem ou se cantem – parece, no entanto, que há ainda um certo receio de se mergulhar fundo nesse mundo tão ‘nossamente’ fascinante da mediunidade”. É dessa forma que o professor de literatura, Calane da Silva, descreve a relevância de se ter mais um produção literária sobre o assunto.

No entanto, como releva Calane da Silva, esta obra tem o mérito de “ser uma narrativa que aborda sem complexos e sem temer essa realidade mediúnica”. O que se sabe sobre o livro?

Trata-se de uma literatura “rica e minuciosa na narração e descrição do que acontece com uma personagem, melhor dito, com a personagem principal de nome Alice, que vai contando ao longo da história todo o seu drama vivencial, todos os sintomas físicos e psíquicos que a levaram à psiquiatria, mas que, fundamentalmente, era o aflorar da sua mediunidade, infelizmente não compreendida pelos familiares e amigos e tratada medicamente como se de uma mera doença mental se tratasse”.

E como é que essa explicação de Calane da Silva – no seu prefácio sobre a literatura moçambicana e o discurso da mediunidade – nos aproxima da experiência de Paulina Chiziane? A autora responde dizendo que “eu fiquei maluca. Por isso levaram-me à psiquiatria, embora não estivesse doente. Havia viajado para um mundo que não conheço”.

Com um grande desenvolvimento, Chiziane explica o seu drama nos seguintes termos.

“No dia em que os meus filhos foram deixar-me no hospital, os médicos, como normalmente fazem, tentaram fazer-me adormecer.  Mas, a partir das 17.30 horas, comecei a sentir um grande desconforto. Todas as pessoas tinham a metade do resto. Enxergava com um olho apenas. O médico que eu o conheço muito bem, quando se aproximou para falar comigo não tinha a cabeça. Depois eu questionei-me. ‘Que lugar horrível é esse? Onde é que estou? Porque é que a minha família me levou a este lugar?’ Afinal, eu estou bem e os outros é que não estão”.

Paulina recorda-se de que no referido lugar, “cheio de monstros, onde a única pessoa normal era eu, tirei a roupa. Peguei na capulana e envolvi-me. Usei sapatos e fugi. Zanzei pelas ruas até que cheguei à Embaixada de Portugal, onde disse: ‘Vim pedir asilo político, porque fugi do hospital’”.

No princípio ninguém a reconhecia, mas depois chegaram os seus amigos. Vieram os seus familiares também. “Tentaram levar-me, novamente, ao hospital, mas não conseguiram porque eu estava muito violenta de tal maneira que não queria estar naquele lugar monstruoso onde a única pessoa perfeita era eu”.

Não os chamem malucos

Na Bíblia Sagrada, Paulina Chiziane leu o livro de Lucas 4: 1 – 13, onde se explica que por 40 dias, no ermo, Jesus Cristo passou fome, foi tentado pelo diabo com quem falou de tal sorte que – como ele o Satanás é uma entidade invisível – as pessoas comuns podiam deduzir que Cristo estava a discutir sozinho.

“Fiz esta leitura bíblica por uma razão simples: Jesus Cristo – sobre quem diziam que estava cheio de Espírito Santo – foi ao deserto. Sem comer nem beber algo, por lá permaneceu. Estava sozinho e assim falava. Ora, se qualquer pessoa passasse pelas suas proximidades diria que ele estava maluco”.

O pior é que, de acordo com a escritora, quando se trata de um escrito patente na Bíblia Sagrada, as pessoas não analisam, nem comparam as realidades. Em resultado disso, o continente africano permanece atrasado, muito em particular, “porque nós não temos o hábito de recolher as memórias”.

Relacionado com a mediunidade, Paulina Chiziane elabora um desafio actual “aos cientistas, médicos, psiquiatras e a toda a sociedade no sentido de sempre que virem uma pessoa a falar sozinha, na rua, não a considerarem maluca”.

“A um homem que desafia o diabo, como é que se chama? As pessoas dizem que é maluco. Chamem a ambulância e levem-no na psiquiatria. Foi exactamente isso o que aconteceu comigo. Então, se é com Jesus Cristo que acontece dizem que tudo é sagrado. Ele estava cheio de Espírito Santo. Porque é que o que sucedeu com ele não se pode repetir em mim? Porque é que quando fenómenos similares acontecem comigo, dizem que tenho demónios?”

A produção do Na Mão de Deus – refere Chiziane – foi muito obstruída. “As pessoas diziam que não se devia escrever porque o assunto é demoníaco”.

É preciso convir, então – como a autora de Niketche afirma – que, apesar de parecer  novo, Na Mão de Deus é um livro muito antigo. Ele foi escrito por outras pessoas há mais de dois mil anos, sendo que a mesma história é sagrada e conquistou os corações da humanidade. “O problema é que quando a mesma história é escrita por um negro, um africano, uma mulher, uma moçambicana, as pessoas dizem que é diabólica. Ou, que o seu autor é demente”.

Ora, se um médico, um psiquiatra analisar as experiências pelas quais Jesus Cristo passou, a escritora acredita que se chegaria à conclusão de que Jesus foi esquizofrénico, demente e descompensado. Então, devia ser internado num hospício.

De uma ou de outra forma, o que Paulina Chiziane – cuja obra é produzida em co-autoria com Maria do Carmo da Silva – pretende sublimar é a necessidade de se fazer o registo de memórias. “Nós temos tanta sabedoria espalhada e preferimos ler um livro que vem da mão do outro. O pior é que nessa leitura não temos tido o cuidado de analisar e ver o que há de essencial”.

Mais importante ainda é que “se uma pessoa estiver doente, tiver algum problema” – o conselho de Paulina Chiziane é – “que escreva sobre o assunto”. Afinal, “a Bíblia Sagrada não é mais do que um conjunto de narrações de situações que foram vividas na sociedade. E esse livro encanta o mundo. O problema é que as pessoas chamam-no sagrado, mas quando experimentam situações similares – na vida pessoal – não fazem comparações entre o sagrado e o profano”.

Enfim, sobre Na Mão de Deus – que agora está nas mão dos moçambicanos e de outros leitores no mundo – Calane da Silva espera que “esta obra não seja analisada e criticada superficialmente, como mera fantasia ficcional de mentes febrilmente imaginativas, que não seja vista e lida com todos esses condicionalismos impostos e auto-impostos”.

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