Quinta-feira, 12 de Março. Havia há pouco ligado o aparelho de televisão para ver as notícias do dia quando uma rajada de 14 ou 15 tiros de AKM rompe o silêncio da noite. Quando me aproximo da janela mais próxima ecoam mais três.
Ainda a minha mulher abria a boca, num misto de espanto e incredulidade, já eu havia pegado na bolsa da máquina fotográfica e num pequeno bloco de notas para fazer horas extras porque o jornalista, tal como o médico, o bombeiro ou o polícia, está de piquete as 24 horas do dia e quem assim não pensar – e hoje, principalmente neste país, há muita gente que assim não pensa – não vale a pena estar na profissão, porque ser jornalista implica partir em busca da notícia onde e quando ela surge, tal como o médico corre para uma cirurgia após um acidente ou um bombeiro para um fogo depois da sua deflagração.
Identificada a proveniência dos tiros, as barracas do Museu, meto-me no carro e sigo para lá. Ao dobrar a esquina da Avenida Mártires da Machava, ali mesmo onde começa o dumbanengue, paro o carro para observar a situação. Diante dos meus olhos, quatro homens tentam colocar uma corpulenta mulher na caixa aberta de uma carrinha. A mulher grita, berra, esperneia, delira. Fá-lo de um modo alucinado. O taipal desobedece às ordens nervosas dos homens e não desce de maneira nenhuma.
Quando me preparo para sair alguém berra: – Sou irmão dela! Pode levar-nos no seu carro ao hospital? Anuo com a cabeça e saio imediatamente para ajudar a mulher a entrar. A mulher, como um corpo inerte, pesa chumbo, que, seguramente, nada tem a ver com o chumbo que transporte acima da nádega, demasiado ensanguentada para que se perceba a gravidade do ferimento. Este peso, surreal, é-lhe transmitido pelo chumbo de ver a morte por perto. As formas do seu corpo colidem com a parte traseira do meu veículo e só algum tempo depois, e com muito esforço, se ajustam. O tempo passa.
Os segundos parecem minutos e os minutos parecem horas. Os berros, esses, redobram de intensidade. Pergunto-me a mim próprio: – Qual será a dor deste tiro? Será que a mulher berra pela dor do tiro em si ou berra pela proximidade da morte que esse tiro lhe provoca? Com aquele alarido, se a morte fosse de se assustar, seguramente que já há muito teria fugido. Lanço um olhar para a máquina fotográfica que está pousada ao meu lado esquerdo, no chamado “lugar do morto”. Nem penso em tirá-la da bolsa. O Código Deontológico do Jornalista diz: numa situação extrema, o socorro da vítima é prioritário.
Mas, antes do Código Deontológico do Jornalista, está o código humano que nos obriga e nos impõe a salvar o nosso semelhante quando este está em perigo. Finalmente arranco. O irmão segura, com uma mão, os pés da irmã e, com a outra, a porta que vai entreaberta porque a largura do carro é menor do que o comprimento da mulher. A mulher tomba do banco traseiro e encaixa-se entre bancos.
Os gritos não cessam. Antes pelo contrário, intensificam-se. Nesta fase de delírio não ouve ninguém. Volto a pensar: – Qual será a dor deste tiro? Por sorte, como se pudesse falar de sorte no meio disto tudo, o Central, o melhor do país, fica perto. Em muito pouco tempo, para ela foi uma eternidade, chegámos ao destino.
A mulher encaixou-se de tal maneira que é difícil retirá-la. Quatro homens puxam-na e repuxamna. A bala mexe-lhe na cintura. Essa maldita bala que andava perdida até encontrar, como um parasita acha um hospedeiro, o seu corpo. Dizem-me que a mulher foi vítima de bala perdida, uma expressão tão estúpida que só encontra paralelo em outras duas: “vítima de fogo-amigo” ou “dano colateral”, como se o fogo não fosse sempre inimigo ou como se os danos de uma guerra não fossem todos centrais quando se trata de pessoas.
A maca chega e a mulher, como uma rolha comprimida numa garrafa, salta do carro para a cama ambulante. Os gritos, esses, não abrandam. Volto a pensar: – Qual será a dor deste tiro? Enquanto isso, no carro, fica um leve odor a adrenalina, provocada pela incerteza da vida ou… pela proximidade da morte.