As primeiras palavras que escrevi para o DN a relatar as eleições sul-africanas de 1994 foram: “Qualquer jornalista estrangeiro que chegue hoje a um aeroporto da África do Sul traz na bagagem uma função de abutre. Aquilo que de nós se espera é investirmos sobre o lugar de uma tragédia em curso – e a África do Sul é isso, a imagem do fotógrafo Ken Oosterbrook, anteontem morto em East Rand, é isso.”
Mas adiantei, optimista: “Mas a África do Sul é muito mais.” Era uma quarta-feira, 20 de Abril. De 1994. O ano interessa, como eu lembrava, à luz do que acontecia, então, na Europa: “A África do Sul é um país que pratica o paradoxo de estar a sacudir o apartheid quando o mundo se acolhe a ele, descobrindo que entre um bósnio sérvio e um bósnio croata cabem todas as diferenças do mundo.” Viviase ali, na ponta sul de África, uma viragem que, o mais provavelmente, iria acabar mal.
Durante duas semanas, a duas páginas por dia, contei o país. De carro, subi do extremo sul pela margem do Índico, pelas mais modernas cidades africanas, Cidade do Cabo, Port Elizabeth, East London, Durban, virando para Joanesburgo, passando por bantustões que acabavam, Ciskei e Transkei, subúrbios onde zulus e xhosas se desafiavam à faca, terras de bóeres que sonhavam ainda fazer um ghetto branco no Estado Livre do Orange.
Eu tinha começado, como já disse, pelo bem-nomeado Cabo da Boa Esperança (optimista, repito): “(…) a Cidade do Cabo tem jovens bóeres e indianas de sari que se juntam nas livrarias do Waterfront para comprar publicações académicas sobre os cenários possíveis do futuro da África do Sul.” Acaba com uma só palavra o meu primeiro texto: “Oxalá.”
Eu queria ser optimista mas a estrada de saída da cidade mostrava-me bairros com miradores e holofotes, como nos campos de concentração, onde o gang de mestiços Hard Lives (Vidas Duras) guardavam os seus da invasão esperada dos negros. No Ciskei, Joshua Mkhuseli, negro, mecânico, delicado mas firme não quis falar comigo, um branco, que nem sabia o que tinha sido Sophiatown.
Mas eu sabia: em 1955, os negros desse bairro de Joanesburgo tinham sido expulsos (e, entre eles, vim a saber, os pais de Joshua, que emigraram para o Ciskei), para se construir um bairro branco de nome provocador, Triomf. E em 1993, o mais novo dos filhos de Joshua (os outros dois tinham voltado para Joanesburgo) fora morto por tiros da tropa, numa manifestação do ANC: “Quer queira quer não, isto é uma luta entre brancos e pretos”, disse-me Joshua Mkhuseli, adepto do PAC, partido negro radical.
Em Bloemhof, na sua fazenda do Orange, entre pradarias de milho, Jan Olckers, voluntário das SADF, o exército sul-africano, que combateu em Angola e no Norte da Namíbia, disseme: “Não gostaria de servir na SADF sob um governo negro.”
Do que ele gostava, mesmo, era de ter um volkstaat, um estado branco. Em Lamontville, subúrbio de Durban, encontrei o padre Peter Lafferty, que quase perdeu a vida por ser escocês e, naturalmente, do Celtic. Os zulus do partido Inkatha não perceberam que o seu cachecol verde era paixão clubística e não adesão ao odiado ANC e quase o lincharam…
Maus prenúncios para as eleições. Mas estas vieram, assisti a elas no mítico Soweto, bairro negro de Joanesburgo. E elas, as eleições, foram definidas pelo canto e dança do bispo Desmond Tutu, Nobel da Paz: “O meu país é um arco-íris.” E Max Du Preez, conhecido colunista anunciou na televisão:
“Quero dar-vos uma boa notícia, os enviados especiais dos jornais de todo o mundo vão-se embora: querem ir para sítios onde há notícias.” Ele mentia, havia uma notícia local: a África do Sul era possível.