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Valores humanos degeneram perante a morte

Valores humanos degeneram perante a morte

O intelectual português Coimbra Martins dizia: “A vida seria uma eterna comédia se a morte não lhe emprestasse seriedade”. Mas esse pensamento parece ultrapassado, se nos debruçarmos sobre a forma como é encarada esta fase da existência, hoje em dia, em que a comédia extravasou para o suposto lado da seriedade. Os funerais tornaram-se palcos de moda, e os momentos de consternação criados pela partida de um ente querido dão oportunidade à demonstração da opulência, ou do oportunismo daqueles que terão os próximos dias com pasto garantido. Já não se vai às cerimónias fúnebres por solidariedade, mas para se ser visto, e celebrarem-se momentos de regabofe, com o ponto máximo da festa a exaltar-se no oitavo dia do falecimento de alguém.

Felizardo Macatamela, um ancião de vida serena regida pela religião, e, por via disso, um apologista da partilha e da compaixão, já não acredita no sentimento das pessoas. Para ele, alguém que sente a perda de um ente querido “não vai de minissaia ao cemitério nem atende ao telefone enquanto se realiza o funeral”.

Pior do que isso, Macatamela afirma que o oitavo dia devia ser banido da nossa tradição, “porque, para além de constituir um encargo desnecessário para a família enlutada, tornou-se um momento para a congregação de pessoas que vão para ali movidas por outros interesses. Os nossos valores humanos degeneraram para dar lugar ao vazio de espírito”. Entretanto, a morte não serã interpretada da mesma forma por todos.

Segundo o nosso interlocutor, “Jesus Cristo morreu para nos salvar dos nossos pecados, e nós hoje morremos para nos salvar deste mundo cada vez mais injusto. Não acho que, depois de se enterrar um corpo, ainda tenhamos que nos matar de sofrimento porque a morte faz parte da própria vida. Aqueles que voltam várias vezes ao cemitério depois de sepultarem o corpo do seu familiar devem saber que ninguém está ali. Mas há muitos ignorantes que choram perante o túmulo pensando que a pessoa ainda ali se encontra. É pura ignorância”.

Já para o Reverendo Marcos Macamo, secretário-geral do Conselho Cristão de Moçambique, o oitavo dia, na perspectiva do africano, simboliza o romper do ciclo da morte que pairou durante sete dias numa família enlutada.

“Não condeno esta prática porque acredito que é a maneira que o africano encontrou para recordar o seu ente querido, até porque para ele existe a vida depois da morte. A vida continua no além, um morto para o africano desempenha um papel importante na familia, uma vez que zela por ela”.

Em África, particularmente em Moçambique, falar da morte é diferente de como se fala no Ocidente. A religião santifica as normas que encontra numa sociedade, em regra, ela subordina-se à tradição. Para o africano o morto está próximo do além.

“Antigamente, em África uma família que perdia um ente querido ficava isolada dos restantes membros da sua comunidade durante sete dias. Todas as crianças eram levadas para muito longe e só ao oitavo dia é que a vida voltava ao normal. O oitavo dia significava limpar todo o espectro da morte; por isso, lavavam-se as mãos. Portanto, o oitavo dia lava a morte que pairou numa família. Mas a emancipação quebrou estes valores, embora continuem a verificar-se aqui e ali”.

Em termos bíblicos, para os cristãos o oitavo dia não significa nada, “mas achamos que não há razão para se romper com as tradições, as sociedades é que fazem as religiões”. Macamo refere ainda que “a pessoa que não esteve no dia do enterro tem no oitavo dia a oportunidade de se despedir do morto, conhecer o seu lugar de descanso. O oitavo dia marca o fim de um ciclo da morte…”.

Gastos supérfluos

Na verdade, a morte no continente negro é elevada ao nível do fanatismo, como, por exemplo, por uma determinada mulher idosa, pobre, que, querendo celebrar o sexto mês da morte do seu marido, teve de vender as únicas três chapas de zinco que tinha, e com o dinheiro adquirir mantimentos para alimentar os convidados. Esta atitude pode ser considerada um absurdo porque ela precisava das chapas para cobrir a sua casa, porém, a alma do marido paira de tal maneira que se torna necessário venerá-la, sob o risco de, em caso de não cumprir esse ritual, semear pragas no seu lar. Mas o oitavo dia, na linguagem de Macamo, não é bíblico nem sociológico, é crença, é tradição.

“A religião tem de aceitar e moderar. Contudo, achamos condenáveis as atitudes de ostentação de luxo nessas cerimónias, pois há pessoas que gastam o que não têm. Em algumas famílias, o oitavo dia é uma festa, compram-se grandes quantidades de mantimentos e bebe-se. Achamos que isto é desnecessário, e nós temos aconselhado as pessoas a evitarem o dispêndio. Por exemplo, das 24 confissões religiosas filiadas no Conselho Cristão de Moçambique, nem todas seguem as normas estatuídas em relação ao oitavo dia, embora uma e outra apoiem estas práticas”.

Entretanto, segundo o nosso interlocutor, a Igreja Universal do Reino de Deus e a Assembleia de Deus, duas das maiores congregações cristãs no país, não fazem parte do Conselho Cristão de Moçambique.

Não se pode comercializar um ser humano

Relativamente ao negócio das urnas, o nosso entrevistado refere que foi um dos primeiros líderes religiosos que acompanhou um funeral numa vala comum.

“Constatei que era algo indigno para um ser humano. Organizei um intercâmbio com algumas agências funerárias e fiz perceber que a morte não pode ser motivo de negócio. O ser humano merece uma morada (sepultura) digna mas não precisamos de transformar a morte em lucro fácil. A questão das mordomias preocupa-nos porque um ser humano que descansa não precisa de uma campa que vale, por exemplo, 35 mil meticais”.

Num outro desenvolvimento, Marcos Macamo disse que, geralmente, “as pessoas investem na morada física (túmulo) do ente querido mais do que não investiram nele em vida. Elas gastam tanto por ele depois da morte, o que não faz sentido. Deus, decerto, não apoia o luxo, o dispêndio desnecessário. Deus importa-se com o interior da pessoa, com o seu valor para a humanidade; o resto é coisa dos homens”.

Na perspectiva do secretário-geral do Conselho Cristão de Moçambique, Deus não fez povos maiores que os outros. Contudo, as urnas tentam distinguir as pessoas através de posses, então, temos que educar as pessoas no sentido de que somos todos iguais aos olhos de Deus. Por outro lado, temos de ter em conta a ética.

“E a sociedade tem de reflectir sobre aquele ser humano que não tem família, que foi atropelado e perdeu a vida, e ninguém reconheceu o corpo que vai à vala comum. Temos de encontrar uma maneira de dignificar o descanso de todos os nossos irmãos”.

O que diz o Islão

Segundo Muhamad Givá, da Mesquita do Conselho Islâmico da Maxixe, não há espaço no Islão para misturar religião com hábitos tradicionais.

O Islão significa submissão, ninguém deve ficar sentado e de pé ao mesmo tempo. Há quem considere o Conselho Islâmico uma instituição que marginaliza os hábitos culturais, mas o Islão combate a heresia. No tocante ao oitavo dia, disse o nosso entrevistado, existe dentro de alguns muçulmanos (atenção, não no Conselho Islâmico), práticas similares às de outras religiões:

“Eles têm o Ziyarate, missa a que os muçulmanos recorrem depois da morte de um ente querido, mas que não faz parte dos mandamentos do Alcorão. Ziyarate significa visitar um familiar, mas eles procuram essa palavra e usam os ensinamentos do Alcorão incorrectamente”.

As práticas que contrariam o Alcorão

De acordo com a explicação de Muhamad Givá, o Ziyarate tem quatro fases, nomeadamente as missas de três dias, de sete dias, de 40 dias e de um ano. Nesses rituais há comes e bebes e recitam-se alguns trechos do Alcorão para legitimar a cerimónia. Contudo, as missas mais frequentes são as de três e de 40 dias, alegadamente porque depois de três dias a alma volta à família enlutada.

“É preciso salientar que no Islão essas práticas são condenáveis, não existem no Alcorão fundamentos que justifiquem tais práticas. A recomendação do profeta Maomé reza que quando uma pessoa morre não deve ser retida na terra, deve ser enterrada o mais rapidamente possível”, disse o nosso interlocutor.

“Quando a pessoa morre, o corpo deve se rapidamente despido, lavado e enrolado em três lençóis brancos. Depois faz-se a oração de despedida, liderada pelo Imamo (líder de uma comunidade islâmica) que pede misericórdia pelo homem para que seja bem recebido por Deus no além. Feito isto, o corpo é carregado e introduzido na cova”. Segundo Muhamad Givá, não há urnas nem nada do género. Aconselha-se aos praticantes do Islão que prestem apoio humanitário aos que perderam um ente querido.

Não se recomenda, da parte da família enlutada, a preparação de nenhuma refeição para os que vierem prestar assistência. Todavia, “temos infelizmente, no Islão, algumas famílias que transgridem os mandamentos do Alcorão porque há determinadas práticas que transportam da tradição para a religião”. “Gostaria de convidar os meus correligionários muçulmanos a seguirem na íntegra os mandamentos do Alcorão.

Se adoptarmos correctamente os mandamentos do Islão podemos acabar com muitos males da sociedade. À sociedade, em geral, convido a pautar por hábitos saudáveis. Choca-me, sobremaneira, quando vejo pessoas morrerem devido a acidentes de viação causados pelo álcool. Gosto daquilo que a esquadra do Hospital Central de Maputo faz. Todas as semanas expõe em frente do hospital viaturas sinistradas. Penso que é uma boa forma de chamar a atenção das pessoas”.

Endividar-se para realizar um funeral

Há dias, o @Verdade visitou algumas agências funerárias situadas nas cidades de Maputo e da Matola e constatou que há um marasmo nesta área, supostamente devido aos elevados custos da matéria-prima usada no fabrico de urnas. Contudo, a morte representa dois mundos cuja muralha divisória é a opulência e a miséria. É que, enquanto uns gastam balúrdios para enterrarem um ente querido e promovem festas pomposas com direito a água mineral e bebidas alcoólicas caras, outros endividam-se para adquirirem um caixão.

Por via disso, a não amortização das dívidas por parte das famílias enlutadas que, devido à pobreza, não pagam os serviços prestados na hora de consternação, e a concorrência desleal de alguns agentes informais promovidos pelas instituições que tutelam o ramo são as maiores queixas apresentadas ao nosso Jornal.

“As pessoas procuram os nossos serviços no momento da dor mas alguns colegas não olham para a componente emocional. Estamos numa área sensível e alguns procuram apenas o lucro, o que mancha a nossa imagem”, desabafou Samuel Micas Banze, director e proprietário da Funerária Banze.

Ele assegurou que actua nesta área não apenas para ter lucro; por isso, lamentou o facto de ter somas elevadas de dinheiro nas mãos de muita gente. “Elas (as pessoas) não conseguem pagar as dívidas, ainda assim, falta-me coragem de voltar as costas a essas pessoas quando estão constrangidas pela perda de um ente querido”.

O custo de uma urna básica é de 1.948 meticais, contudo, muitas famílias, devido à sua precária condição financeira, pagam apenas 1.000 meticais e “eu sinto-me na obrigação de fazer qualquer coisa para enterrar os indigentes.

O Governo já faz a sua parte pagando aos coveiros. Penso ser de extrema importância as pessoas honrarem os seus compromissos, mas 75 porcento delas não liquidam a dívida. Ora, temos muitas despesas por pagar, tais como a manutenção das viaturas, o combustível, os honorários dos trabalhadores e os impostos”.

Pai enterrado como um cão

Samuel Banze abraçou esta profissão quando viu o seu progenitor ser sepultado como um animal. Corria o ano de 1967 quando o seu pai, então cego, tombou nos seus braços e nunca mais se levantou. Ele lembra-se, como se fosse hoje, daquela fatídica noite de 19 de Janeiro.

“Eu tinha apenas nove anos de idade, quando o meu pai, subitamente, perdeu a vida nos meus braços. O mais doloroso foi testemunhar a forma desumana como ele foi enterrado. Vi, com lágrimas nos olhos e impotente, o corpo do meu pai a ser envolto em caniço e sepultado como um cão. Naquele momento, eu disse para mim mesmo que tudo faria para ver as pessoas a serem tratadas da forma mais condigna e humana. Quando completei 18 anos, concorri a uma vaga de coveiro no cemitério de Lhanguene.

Fui admitido e, em 1987, fundei a Funerária Banze”. Deste modo, este compatriota está neste ramo sensível para ajudar os moçambicanos a serem enterrados como seres humanos,. “Asseguro que apenas 10 porcento das pessoas são bem enterradas neste país, 90 porcento são maltratadas, uns sem urna e outros na vala comum”.

Banze vincou, entretanto, que há necessidade de o povo perceber que as agências funerárias fazem um grande sacrifício com vista a prestarem esses serviços porque o futuro se revela sombrio por causa das dívidas. Neste momento tem cerca de dois milhões de meticais nas mãos das pessoas. Manter o negócio é o principal desafio, tendo em conta que o encaixe financeiro é de apenas 25 porcento, sendo que 75 porcento são dívidas ainda por liquidar.

O negócio de corpos

O nosso interlocutor mostrou-se indignado com as acusações segundo as quais as agências funerárias negoceiam corpos com o intuito de ter mais clientes e envenenam fontanários para fomentar mortes. “Essas acusações não fazem sentido porque o envenenamento não é direccionado… também tenho família. Que garantias posso ter de que as famílias enlutadas virão ter comigo?”

“A acusação de que desenterramos caixões nos cemitérios ainda é a mais descabida. Desafio qualquer pessoa a provar que um caixão foi desenterrado. Posso entregar tudo o que é meu. Ora vejamos: um caixão para ser enterrado precisa de quatro pessoas. Está a imaginar o trabalho para desenterrá-lo e quem pode comprar esse caixão sabendo-se que 48 horas depois estará degradado, uma vez que a madeira que usamos é falsa?”

Deve haver solução para as valas comuns

A situação das valas comuns é por demais pertinente e Banze afirma que deixa muito a desejar. “Dói-me bastante ver um irmão a ser enterrado como uma pedra. A sociedade em geral deve reflectir sobre isso, temos de arranjar uma solução. Há mais pessoas a serem enterradas como cães e isso não nos dignifica como um povo”.

A Funerária Banze saúda, entretanto, a mudança de local do cemitério de Lhanguene para Michafutene. “Perceba bem esta parte: temos o espaço entre campas de 60cm, mas é aqui onde se inventa uma cova para se meter um caixão de 65cm. Isto já não é enterro, é entulhar o ser humano, era e infelizmente ainda é desumano. Asseguro que no Lhanguene não há nenhuma cova que tenha apenas um corpo. Portanto, o cemitério de Michafutene veio aliviar a pressão”.

Contudo, em relação ao seu negócio, há estagnação. “Antigamente fazia, em média, entre 10 e15 caixões. Actualmente são apenas 3 a 4 e há dias que não faço nenhum, isto porque o Ministério da Indústria e Comercio é uma lástima; qualquer pessoa chega lá e dão-lhe uma licença para um ramo deveras sensível, diferentemente dos tempos idos que se pedia para ver os escritórios e as oficinas.

A anarquia

Manuel Camejo, da Funerária Moçambicana, queixou-se da anarquia que reina na morgue porque “a única funerária que existe em Moçambique é a Direcção da Saúde, nós já nem sabemos quem é que manda; não sabemos quem atribui as licenças; a morgue está infestada de agências ilegais que ferem a deontologia profissional desta área; eu sou mais prejudicado porque não aceito subornar ninguém; tenho um corpo que devo mandar para Portugal, mas o alvará não sai há três dias (referia-se ao período antes desta entrevista) porque não aceito entrar no esquema…”

Camejo lamenta a burocracia excessiva que reina na morgue e afirma que, ao longo dos 20 anos em que trabalha nesta área, atravessa neste momento o período mais turbulento devido à concorrência desleal e à corrupção instalada. O pior é que não sabe onde exigir responsabilidades, o município “lava as mãos” e a Direcção da Saúde idem. Actualmente o negócio não cresce e o número de funerais por dia reduziu drasticamente; por isso, teme o futuro.

“Os corpos ficam dias à espera de alvará e isso acarreta transtornos enormes nas finanças. O pior é que não sabemos onde reclamar.” Ainda na senda das inquietações, Camejo disse ao @Verdade que a maior parte das agências que aliciam clientes na morgue não tem escritórios nem carros, foge ao fisco e trabalha graças a um alvará provisório. Assim é fácil ganhar muito mais que as empresas devidamente credenciadas. Ele afirma que tais práticas são toleradas porque a cada enterro se paga uma comissão de 400 meticais.

Por sua vez, Sousa Luciano Bambo, da Funerária Marrengula, que possui agências em Boane e Mavalane, fabrica urnas e realiza enterros há sensivelmente 10 anos. Ele queixa-se do encarecimento da matéria-prima e da fraca capacidade financeira dos seus clientes, nega que a sua empresa angaria clientes na morgue e entende que uma agência organizada deve ter um colaborador no terreno para diferenciar os caixões.

O nosso interlocutor lamenta a falta de honestidade de alguns clientes que contraem dívidas e furtam-se à sua liquidação e chama de absurdas as acusações segundo as quais há pessoas que desenterram caixões, assegurando que as urnas são feitas com base em material falso, nada resistente, que horas depois de ir para debaixo da terra fica totalmente desestruturado. “Basta uma lágrima para o caixão estragar-se”.

O preço dos caixões é, de longe, inferior ao do fabrico, mas as pessoas não têm dinheiro. Por isso, o carro do município dirige-se à vala comum mais de três vezes por semana. Segundo o nosso interlocutor, a situação está tão crítica a ponto de sugerir um estudo colectivo para inverter a situação. Augura momentos difíceis porque a concorrência é enorme, contrariamente aos tempos idos, em que conseguia levar a cabo oito enterros por dia.

Actualmente realiza, em média, três funerais, e alega que continua nesta área por “amor à camisola”. “Não há tanto dinheiro neste negócio como se diz por aí, eu faço-o apenas para ajudar o próximo,” disse Bambo, que alega que gostaria de expandir os serviços para as localidades mas as pessoas estão com medo de falar ou ver agências nos bairros e proíbem a sua fixação. “Os tabus escravizam um povo,” referiu.

Ninguém vai escapar à morte

Já a Agência Mufutsane situada na Matola G, representada por Paulo Mujui, gerente da empresa, há sete anos no mercado funerário, entende que há regressão nesta área. “O nosso desejo não é que haja mais mortes, pese embora esse seja o caminho de todo o ser vivo, mas estar neste ramo tem sido difícil porque lidamos maioritariamente com gente sem capacidade financeira; o caixão mais barato custa 2300 meticais, porém o povo não consegue pagar este valor. É penoso o aumento de corpos não reconhecidos na morgue e que depois desaguam na vala comum.

O ser humano deve ser enterrado de forma mais digna e, em regra, isso não acontece no país. Enfim, Deus colocou-nos neste ramo para ajudar as pessoas no momento de agonia”. Mujui defende que a sociedade deve evitar conotar os profissionais da área funerária como gente sem escrúpulos porque “o caminho da morte será percorrido por todo o ser humano, devemos unir-nos para proporcionarmos um descanso condigno aos perecidos”.

O calcanhar de Aquiles

A concorrência tem sido um calcanhar de Aquiles, e Mujui, sem mencionar nomes, diz que existem colegas sem ética neste ramo; por isso mesmo, num passado recente, garantia a realização de três funerais por dia, mas agora dificilmente vai para além de um. Por outro lado, defende que a redução drástica de mortes prende-se com a melhoria dos serviços de Saúde. Refuta, com certo desdém, as acusações segundo as quais há negociações com vista a obter-se o serviço de enterro de mais corpos. O dirigente da funerária em apreço apela às pessoas para que abandonem a realização de enterros em cemitérios familiares porque, amiúde, estes são construídos em lugares impróprios.

“Machamba é uma zona onde as pessoas produzem culturas alimentares para consumo humano, mas ao lado existe um cemitério. Mesmo a água que consomem tem resíduos contaminados por ossadas humanas. Em todos os países do mundo existem agências funerárias e o Governo deve estimular a expansão desses serviços para os bairros e zonas rurais. Os moçambicanos merecem enterros condignos”..

O proprietário da Agência Funerária Amor de Cristo, localizada na Matola, Infulene “D”, começou por elogiar o Jornal @Verdade que, no seu entender, pauta por um jornalismo rigoroso e imparcial. Assume não gostar de prestar depoimentos à Imprensa e não quis revelar o seu nome. Falando das acusações que pesam sobre o ramo, avança com questionamentos: “Quem seria essa pessoa que envenenaria, por exemplo, um fontenário? Que dividendo teria tendo em conta que também tem família?

Quem já foi apanhado a cometer tal acto? Quem pode provar que um caixão já foi desenterrado? A primeira dificuldade são essas especulações sem nexo. Isto mancha a nossa organização. Sabemos que há vozes que alegam que vendemos caixões de material precário a preços proibitivos, mas isso, de forma alguma, constitui verdade. Somos parentes pobres, mas honestos”. A nossa fonte diz que estamos numa sociedade em que a pobreza é absoluta, “por isso somos caridosos, mas as pessoas não percebem isso.

Os custos do fabrico do caixão são elevadíssimos. Sugiro ao Governo para que proceda à redução dos impostos porque as agências desempenham um papel social crucial. Se cobrassem o valor real das urnas, 95 porcento das pessoas iriam para a vala comum”. Ele lamenta a desonestidade das pessoas que não pagam as dívidas, relegando a sua empresa para uma situação próxima da falência.

Na Agência Funerária Amor do Cristo, o custo mínimo de um caixão devia ser 3.000 meticais mas, tendo consciência da pobreza dos moçambicanos, não ousaria pô-lo em prática. Vê vantagens com o cemitério do Michafutene no concernente a enterros mais condignos, mas queixa-se da morosidade do trânsito de automóveis, o que obriga as agências a atrasarem-se no acto do transporte dos corpos, e teme que no futuro tudo venha a ser mais complicado.

“Se as pessoas não conseguem respeitar uma ambulância que transporta uma vida no leito da morte, jamais irão respeitar um morto.” O nosso entrevistado referiu ainda que a realização de funerais diários reduziu consideravelmente. Actualmente leva a cabo, no máximo, quatro enterros, mas há três anos tinha a seu cargo seis. “Acho que há mais corpos não reclamados que vão para a vala comum.”

 

O município tem a palavra

O @Verdade, tentando obter respostas sobre a questão relacionada com a entidade que tutela as agências funerárias e com o fabrico de urnas, deslocou-se ao Conselho Municipal da Cidade de Maputo. Domingas Pedro Romão, directora adjunta de Salubridade e Cemitérios, deu a conhecer que a função do município é coordenar o trabalho das agências no que diz respeito aos enterros no cemitério, para evitar coincidências dos mesmos.

“Quem atribui as licenças para o fabrico e venda de urnas é a Direcção da Indústria e Comércio da Cidade de Maputo. Acordámos, há dois anos, que a responsabilidade devia passar para o município mas até aqui nada foi concretizado. Preparámos os técnicos para recebermos a morgue e o licenciamento das agências mas as pastas teimam em não chegar às nossas mãos”.

Domingas Romão avançou ainda que o município pretende criar uma agência funerária para enterrar os mais carentes gratuitamente porque o número de corpos que vai para a vala comum é chocante. “Penso que por dia temos cerca de 30 corpos que vão para a vala comum, e isso é inaceitável.”

A dirigente municipal avançou, também, que se sente aliviada por ter conseguido reduzir o número de enterros no cemitério Lhanguene. Actualmente permite apenas cinco enterros por dia e no Michafutene ainda não há limites, em média são 12 inumações diárias. A edilidade debate-se, porém, com o problema da falta do pessoal para enterrar os mortos.

“Em 2012, fizemos um concurso para contratar 30 coveiros mas, lamentavelmente, conseguimos apenas 12”. A maior parte dos coveiros que estão no cemitério de Lhanguene é ilegal e protagoniza desmandos; por isso, apela aos utentes do cemitério para que procurem sempre a direcção na altura da realização dos funerais.

“É que os coveiros ilegais especulam os preços dos nossos serviços”. Tendo o município revelado que a responsabilidade de atribuição de licenças às agências funerárias competia a uma outra instituição, o @Verdade conversou com Porfírio da Silva Reis, director provincial da Direcção da Indústria e Comércio da Cidade de Maputo.

Este assegurou que à sua instituição cabe apenas o papel de licenciar as empresas que se dedicam ao fabrico e à venda de urnas de madeira e não o de autorizar a actividade funerária porque “com a provação do Decreto 33/2006, de 30 de Agosto, passou a competir aos órgãos autárquicos o planeamento nos vários domínios, dentre outros, nos cemitérios”.

Por isso, recomendou que a nossa Reportagem se deslocasse ao município de Maputo porque as competências para o efeito já foram passadas. Quanto às queixas sobre a concorrência desleal, o nosso entrevistado disse que devíamos dirigir-nos ao Instituto Nacional de Actividades Económicas. De acordo com Reis, existem, na cidade de Maputo, 15 agências funerárias que se dedicam ao fabrico e à venda de urnas licenciadas pela instituição que dirige.

O delegado do INAE, Elias Jamisse, confirmou que compete à sua instituição fiscalizar a área das agências funerárias mas que “ainda não teve nenhuma acção nesta área. Tratando-se de denúncia, a INAE vai trabalhar para identificar e neutralizar os infractores”.

“Existe uma associação que foi criada para evitar a aplicação de preços exorbitantes mas, infelizmente, não defende os interesses do povo, e sim os seus”, disse à nossa Reportagem Samuel Banze, conselheiro da Associação das Agências Funerárias de Moçambique (ASAFUM).

“Alguns membros não respeitam os preços regulados pela associação. O preço máximo estipulado é de 35 mil meticais mas podes encontrar em algumas agências uma urna a 200 mil meticais. O que é que estamos a fazer? Qual é a moral? A associação está prenhe de pessoas sem vocação, tanto mais que o presidente desistiu do cargo. Eu sou conselheiro e funciono sem um escritório fixo, isto porque os membros não pagam quotas e aparecem apenas quando querem defender os seus interesses”.

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