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Uma família moçambicana com certeza…

Uma família moçambicana com certeza...

O dia-a-dia no bairro do Xipamanine é intenso e incerto. Não por se tratar de um lugar “por onde Deus nunca passou”, como um dia Valete cantou sobre os subúrbios. São quatro da manhã e as ruas estão quase desertas. Mas será que o bairro dorme? Se a noite existe para sonhar o que não se fez e o que não se disse durante o dia, no Xipamanine a realidade é bem distinta. As pessoas já se levantaram para lutar contra a pobreza porque não há tempo para sonhar…

No entanto, a madrugada está quase silenciosa. À excepção do vento e do latido de cães vadios – ecos já rotineiros da operação que as donas de casa prosseguem diariamente contra a fome já se evidenciam.

É o sono, dizem, que divide as mulheres moçambicanas em dois mundos imensos. As que dormem: ricas, estudadas e ‘modernas’. Do lado oposto, as mulheres que se levantam antes do sol: pobres e sem instrução. A uni-las, o papel preponderante da mulher na sociedade moçambicana.

Duas histórias de sobrevivência

A casa de banho de madeira e zinco, sem cobertura, fica separada da moradia onde Manuela Lhongo vive com o esposo e quatro filhos, dois rapazes e duas meninas. Não se trata, porém, de uma inovação na paisagem suburbana maputense. É, isto sim, resultado da forma como são construídas as casas nos subúrbios de Maputo.

Normalmente, as pessoas erguem uma casa onde possam viver e num canto do terreno constroem uma casa de banho precária. Porém, o mais comum é que elas sejam construídas em caniço e sem nenhuma cobertura.

Na casa de Manuela ela é a primeira a despertar. Bem antes das 4horas. Depois de sair da cama vai directo ao quintal. Antes passa pela sala, local que, nas noites, muda de função e vira quarto das meninas. Elas ainda dormem profundamente. Manuela sorri ao vê-las e pede, em pensamento, que o futuro seja melhor para as duas pequenas.

Sai para o quintal com um balde na mão, no qual leva água até ao meio. Actualmente, devido às temperaturas baixas, a água é bem mais fria. Porém, o que perturba Manuela não é o estado da água, mas a incerteza da vida.

“A refeição” é sempre uma incógnita. Isso, diz, “é um problema para qualquer mãe”. Continua: “nem sempre posso contar com o meu marido. A natureza do trabalho dele não permite. Mas quando ele consegue alguma coisa compramos um saco de arroz de 25 quilos. O que sobra vai para pagar a água e a luz”.

O chefe do agregado familiar não tem emprego formal, vive da pintura, uma profissão que lhe dá dinheiro sem data marcada, o que torna ainda mais imprevisível a vida de uma família de baixa renda. Aliás, o lucro total de Manuela não chega, nos melhores meses, à fronteira do salário mínimo. Ainda assim, ela é quem suporta o peso da família.

Um negócio comum

O negócio do carvão não é original. Porém, é a única coisa que Manuela sabe fazer. Comprar e revender carvão. Adquire o produto no mercado do Xipamanine bem ao pé de casa e vende em frente ao seu quintal em pequenos montes. Uns por 15 e os mais caros por 20 meticais. O saco custa-lhe 650 meticais e gera, conta, um lucro que varia dos 100 aos 150 meticais.

A mercadoria dura, em norma, três dias. Manuela não sabe com quanto fica no final do mês. Mas uma estimativa tendo em conta o lucro máximo revela que o rendimento não passaria dos 1500 meticais nos melhores meses.

Porém, do que faz na rua pouco sobra para poupanças. “E vai-se tão depressa! Quando chega já tem destino. Afinal a minha família tem de se alimentar. É ganhar no carvão e tirar para o caril”, conta.

O almoço

São 12 horas e Manuela faz uma pausa no negócio para preparar a primeira refeição do dia. Nos outros dias, diz, a filha é que acende o lume no velho fogão a carvão. A refeição, regra geral, é a base de pão e regada com chá.

Lá para o final do dia, ela larga o negócio e embrenha-se no mercado do Xipamanine. Engana-se, porém, quem pensa que Manuela procura as bancas mais recheadas. Uma vida de sacrifício e privações ensinou-lhe a fazer milagres com pouco dinheiro.

Hoje, por exemplo, amealhou 120 meticais. 70 foram guardados na ponta da capulana e 50 foram levados ao mercado para dar corpo à segunda e última refeição familiar.

Com 15 meticais compra um molho de couve. Depois, nas senhoras perfiladas no chão do mercado, consegue quatro tomates por cinco. Uma cebola por dois meticais e um copo de amendoim por 10.

Manuela move-se com mestria no coração do mercado e desta vez não precisará de comprar arroz. O lucro sem hora marcada do esposo deixou um saco de 25 quilos daquele produto no princípio do mês.

À noite, a fome inquieta os estômagos. Bem na hora da novela das 19 é o tempo de mergulhar noutro mundo. A refeição é servida e a família janta alegremente. O pensamento tenta resolver as suas contradições, como será o dia seguinte, mas não consegue. É a incapacidade de vencer a difi culdade cíclica que fala mais forte.

É impossível sonhar porque a vida é um pesadelo: o Inferno onde as almas vagueiam sem descanso. E vistas daqui as notícias que falam da estabilidade do país parecem ridículas.

No telejornal, o Primeiro-Ministro, Aires Aly, insiste afirmando que o país está estável e que o Governo não prometeu nenhuma cesta básica. Manuela franze a testa e não percebe do que se fala.

A refeição acaba subitamente. Assim sem avisar. A noite entra bruscamente por todas as frinchas. Voltam as dúvidas de Manuela. “O que será da vida amanhã?”, eis a questão de todos os dias.

A vida de Joana

No Quarteirão 4, no Bairro do Xipamanine, são quatro horas quando Joana, o braço forte de um agregado familiar de sete pessoas, sai de casa apressada. Àquela hora o bairro é apenas dela e de mais algumas mulheres, portanto, não há lugar para vergonhas. Aliás, a pressão da pobreza também não deixa espaço para tal.

Vai ao mercado Fajardo. Às seis, regressa. É o seu biscate diário, a “safa” que garante o rendimento mensal da família, inferior a dois mil quinhentos meticais.

Alberto, o esposo, tal como a mulher, nunca teve um emprego formal. Sempre foi um homem de negócios. Porém, experimentou a actividade de mukherista, mas deu-se mal. Faliu e agora está em casa.

Joana é rebento da época em que a cabeça das jovens era inundada pelo sonho de trabalhar na casa dos brancos, todavia, esse desejo nunca lhe rimou nos ouvidos.

Em casa do colono, só trabalhou duas vezes. Com as economias dessa época ajudou o esposo a construir a casa onde criaram oito filhos, dos quais três já têm as suas próprias residências.

Desde então Joana estende um saco no chão, num espaço que no passado foi um campo de futebol, no Bairro do Xipamanine. Os dias são passados, porque não há nenhuma fonte de rendimento, a vender os produtos que compra no Fajardo.

O investimento diário permite-lhe arrecadar um lucro diário de 150 meticais, o suficiente para fazer um xitique diário de 75 meticais, sobrando-lhe igual valor para a alimentação e o transporte dos filhos. No final do mês Joana recebe 2175 meticais, com os quais compra um saco de arroz de 25 quilos, 10 de carapau e cinco litros de óleo.

No passado com esse dinheiro comprava mais produtos. Porém, “o custo de vida está cada vez mais alto”. Joana não se deixa enganar pelos números frios da estatística ofi cial e tem um exemplo prático muito claro: “No início do ano adquiria cinco litros de óleo por 250 meticais e hoje com esse dinheiro compro metade”. Ou seja, a subida do custo de vida sente-a em cada metical que tira da ponta da capulana.

Impossível almoçar

Há anos que Joana não sabe o que é almoçar. Para enganar a fome, por volta das 10h, toma uma sopa de feijão sem tirar os olhos dos produtos e do movimento. Enquanto isso, clientes vêm e vão. Perguntam pelo preço dos produtos, pedem desconto e partem. Uns compram. Os preços variam dos dois meticais aos 30.

As horas da vida de Joana são passadas ali. Presa ao chão não pode sequer sair para almoçar porque “senão não há lucro”. Contudo, essa é a mais doce das suas penas. Os filhos e o esposo têm o que comer enquanto Joana procura alimentos para o dia seguinte. Normalmente, eles arranjam-se com o que sobrou da noite anterior ou se nutrem de pão e chá.

Curvada no chão poeirento, os seus dias são iguais. A única coisa que muda a rotina é a chuva. Mas essa não demove Joana. Às 18h confere o que ganhou.

Carregada com o que sobrou dos produtos, Joana volta ao lar com um sorriso no rosto. Amanhã os filhos irão à escola limpos e sem fome. Joana não tem de cozinhar. O esposo, assim como as filhas, encarregam-se dessa tarefa. Porém, viver não é fácil…

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