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Uma capataz no asfalto

Uma capataz no asfalto

Depois de catorze anos a asfaltar vias, e hoje a desempenhar as funções de capataz na Raimbiw, uma empresa de construção de estradas, Fernanda Paula César continua de pé, mas mesmo assim sem confiar muito no futuro. No passado, ela trabalhou na Empresa de Construção, Manutenção de Estradas e Pontes (ECMEP), mas, quando esta firma faliu, a nossa entrevistada ficou desempegada, mas não por muito tempo. Abriu-se outra janela, que não se sabe bem por quanto tempo se manterá escancarada. “O importante é ter fé e continuar a trabalhar. O resto fica por conta do destino”.

Passa a maior do tempo da sua vida fora de casa, e dorme em acampamentos não muito confortáveis. Apesar deste sacrifício todo, ela não vacila porque “este é o meu trabalho. Estou há catorze anos na estrada e já me sinto viciada. Não consigo pensar noutra coisa”.

Fernanda Paula vive praticamente metida numa multidão de homens, e maior parte deles a trabalhar sob suas ordens. “Não é fácil mandar fazer, sobretudo a colegas do sexo masculino que podem olhar para mim como mulher, mas se quisermos fazer algo importante é preciso atitude e perseverança”.

Neste momento a senhora está afecta ao troço que vai de Lindela à cidade de Inhambane, numa extensão de cerca de trinta quilómetros. “Estamos a reabilitar esta via e o trabalho que temos é da maior responsabilidade. Isso anima-me. Gosto de desafios”.

Trabalhar na estrada dá muito prazer a estar mulher que já criou praticamente uma família entre os seus camaradas de jornadas diárias. “Temos uma cozinheira aqui no acampamento, porém, há momentos em que faço pessoalmente a comida para os meus colegas. Por vezes, quero consumir algo feito pelas minhas próprias mãos”.

Na verdade é uma mulher que inspira. Quando entrou para os quadros da ECMEP, em 2000, não sabia fazer nada, ou seja, não tinha nenhuma formação profissional. “Mas eu estava cansada de estar em casa. Queria fazer qualquer coisa, mesmo que esse trabalho significasse algo que me desvalorizasse. Aliás, o trabalho não desvaloriza ninguém, só dignifica”.

E o destino puxou-lhe para aquela empresa onde lhe deram uma foice para cortar o capim que desponta nas bermas de estradas. “Peguei na catana sem nenhuma relutância e fui trabalhar, mas a minha entrega e a disciplina e, sobretudo, a curiosidade, catapultaram-me para outras tarefas”.

Foi nesta senda que os responsáveis da ECMEP repararam numa mulher que se superava em cada trabalho. “Comecei a trabalhar nos aquedutos e mais tarde na produção de betão”. Mas este era o caminho que se abria para Fernanda assumir a tarefa de asfaltadora. Um trabalho que faz até hoje, mas como capataz. “Ganhei muita experiência e hoje já posso estar neste lugar de chefia e a orientar os meus colegas com alguma competência”.

Três meses sem dinheiro

Enquanto conversávamos com Fernanda, na zona de Mutamba, onde se encontra instalado o seu acampamento, ela lembrou-se do drama espiritual que viveu quando a ECMEP “fechou as portas” e foi declarada extinta, pelo Governo, por incapacidade de adaptação num contexto de competitividade empresarial actual.

“Foi muito difícil. Eu estava habituada a ter o meu salário – embora modesto – todos os meses e quando fiquei sem emprego parecia que tudo caía sobre o meu corpo. Perdi forças, mas foi por pouco tempo porque a fé me fazia perceber que outra porta se iria abrir. Nunca duvidei, tenho mãos para trabalhar, tenho profissão e tenho fé. E na verdade, após esses três meses, fui contractada por uma empresa chamada Ndomaque”.

Ela não ficou muito tempo na referida companhia. Foram apenas seis meses porque o trabalho acabou. “Era um contrato precário, que consistia em reabilitar um troço de três quilómetros e, quando tudo terminou, voltei novamente para casa”, contou a nossa interlocutora.

De novo sem terreno para lutar, era necessário esperar novas batalhas que, se não tivessem aparecido, tê-las-ia inventado. “Mas eu não tenho talento para o negócio como têm muitas mulheres. Acho que fui feita para estar na estrada, a lidar com o asfalto”.

A propósito, Lucrécia Paco já tinha produzido uma peça teatral com o nome, “Mulher asfalto”, e, agora, com outras metáforas, Fernanda não é mulher asfalto, mas, sim, uma mulher no asfalto. “Sim, sou uma mulher no asfalto. Na verdade, é por isso que quando a Ndomaque fechou as portas não decorreu muito tempo até que a Raimbiw me contactasse, sob recomendação daqueles que conhecem o meu trabalho. Sinto-me muito feliz por ser reconhecida”.

É uma mulher que tem lutado diariamente para melhorar o seu desempenho, sobretudo para ser uma profissional responsável e disciplinada. “Acho que sou uma trabalhadora exemplar. O bom comportamento e o profissionalismo são essenciais em qualquer lugar, e eu tenho lutado para conseguir isso e, como mulher, estou constantemente a desmentir aqueles que pensam que há coisas que as mulheres não são capazes de fazer”.

Um exemplo espectacular de Fernanda é ter já vivido num acampamento instalado no mato, durante uma temporada com homens, sem qualquer problema. “Nessas circunstâncias nunca penso neles como homens, mas, sim, como colegas de trabalho, também porque estou preparada para encarar sacrifícios”.

Fernanda é solteira e mãe de um filho. “Tive três, dois perderam a vida. Agora fiquei com um rapaz chamado Custódio. Ele vive em Maputo, mas falo sempre com ele. E quando ele pode vem visitar-me. Amamo-nos muito e estou sempre com saudades dele”.

O futuro

“Não sei como é que vai ser o meu futuro, mas Deus é grande. Todos os fins-de-semana volto para casa onde convivo com a minha família. Aproveito para relaxar e cozinhar. E pensar, também, mas sem muita obsessão. Que a minha vida seja o que Deus quiser. A minha responsabilidade é trabalhar e ter fé, o resto é com Deus”.

Fernanda gosta da cor castanha, e quando lhe perguntámos sobre os motivos, ela só nos disse que gostava. “Não sei porquê, mas gosto do castanho. Pode parecer uma tonalidade triste, mas eu não sou uma mulher triste. Sou forte e acredito no futuro”.

Fernanda Paula tem 45 anos e diz que já não sonha mais com um “príncipe encantado”. “Já não acredito que alguém venha ter comigo para o casamento, mas se vier será uma grande felicidade”. Enquanto essa pessoa não vem, a sua vida é investida na estrada. No asfalto. E na cozinha, pois ela gosta em particular de santolas com caril de amendoim.

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