Para continuarmos  a fazer jornalismo independente dos políticos e da vontade dos anunciantes o @Verdade passou a ter um preço.

Um artista mole que cria assombrações

Um artista mole que cria assombrações

“Lá na morgue” há (sons de) assombrações que apavoram quem – não trabalhando no necrotério – por lá passa. São sonoridades típicas de cenários fúnebres e macabros que, por essa razão, são incomuns em espaços diferentes do cemitério e dos já mencionados. Quanto à obra aludida, o desafio de Reinaldo Jaime Cardoso (Mole) foi produzi-los. Saiba como…

Há muito tempo que o teatro moçambicano começou a evoluir. Os actores e encenadores exibem muito mais do que uma simples dramaturgia. Preocupam-se com o cenário, a iluminação e a sonorização das suas criações. É que neste contexto artístico se implantaram novas necessidades que enriquecem a produção. Geram-se histórias na diegese-básica – aquela que se pretende destinar ao público.

Por essas razões, no teatro, a luz e a sonorização também narram alguma história. No âmbito das peças de teatro, geram-se factos relacionados com a sonoplastia e a iluminação que demandam e criam possibilidades de novas investigações. Trata-se de um desafio que não somente diz respeito aos artistas – como também aos jornalistas culturais. Como interpretar a informação contida na linguagem visual e sonora? Será que também nós, os jornalistas culturais, precisaremos de alguma capacitação nessas áreas?

“Lá na morgue” – a última obra de Dadivo José encenada por Maria Atália com a participação do referido dramaturgo, e de Milsa Ussene e Reinaldo Jaime Cardoso, como actores – o desafio do último artista, que foi director musical, tinha a ver com a necessidade de gerar sons acústicos que nos recordassem cenários de assombração como o cemitério, a morgue, bem como a selva e as florestas à noite. Ousado no tema – as relações humanas entre mortos e vivos – “Lá na morgue” teve o mérito de ter sido a primeira produção teatral que nos fez ‘vasculhar’ as (possíveis) peripécias que decorrem no necrotério. Mas, aqui, o nosso assunto é outro – a música no teatro e a experiência de um artista cujo nome é Mole.

A arte encrusta-se no Homem

Reinaldo Jaime Cardoso tem 30 anos e, em 2010, ingressou na Escola de Comunicação e Arte da Universidade Eduardo Mondlane (ECA/UEM), onde cursa música e, recentemente, por mérito próprio, tornou-se membro da Moticoma – uma banda jovial que toca música tradicional moçambicana. No entanto, esclareça-se, a sua relação com a arte não começa na ECA. Ela é muito mais antiga. “Logo que nascemos, a arte confronta-nos. E a minha relação com ela obedeceu a essas regras socioculturais e artísticas. Para mim, a arte é uma forma humana de ser e estar no espaço social”, começa por dizer Mole que – se são tivesse trocado o campo pelo palco – podia ter sido uma estrela no futebol moçambicano. Mas isso, também, é um assunto marginal.

O facto é que “o meu envolvimento – intenso e profissional – com a música, começa em 2002, quando me envolvi no Festival de Música Crossroads porque foi lá onde ganhei a visão do que pretendia fazer na vida”. O Crosseroads é um certame de descoberta de talentos na área da música. No entanto, “muito antes desse evento, durante o segundo quinquénio dos anos 90, eu já possuía algumas composições musicais. Ainda que sem nenhum acompanhamento, tinha a preocupação de compor músicas, tocar guitarra e cantar empiricamente”.

Se se tomar em consideração a quantidade de instrumentos com que Reinaldo Jaime Cardoso – que também é professor de Matemática, formado pela Universidade Pedagógica em Quelimane, a sua terra natal – se relaciona, não restam dúvidas de que se está diante de um instrumentista completo. Mole toca guitarra, ximbvoco-mbvoco, xizambi, mutoriro – que é um aerofone – chocalhos, mbira, tambores, incluindo outros instrumentos que se enquadram nos de percussão. De uma ou de outra forma, a ferramenta musical que chamou a nossa atenção é outra.

O conduíte

Mole considera que no mundo das artes “o meu desafio tem sido descobrir novas ferramentas e, como instrumentista ou percussionista, apropriar-me delas”. Nesse sentido, “interessei-me pelo conduíte – aquele tubo que transporta água e ar nos frigoríficos e nos ares-condicionados – porque podia utilizá-lo de formas distintas e obter resultados diferentes. Ele pode ser empregue como um reco-reco porque possui ondas que, uma vez friccionadas, produzem um som.

Mas também quando se sopra gera outra sonoridade diferente. No entanto, girando-se cria uma outra e nova sonância”. Mas qual era a preocupação básica, em relação às demandas da peça? A verdade é que “eu queria um instrumento a partir do qual pudesse gerar um assobio sem que o mesmo fosse produzido por mim. Além do mais era necessário gerar uma nuance do campo, recordando às pessoas o som produzido pelos pássaros e todo o cenário da floresta”. Nesse sentido, “aquele instrumento que eu considero aerofone – porque a base da emissão do seu som é um tudo oco conhecido pelo nome conduíte – foi adequado”.

Integração nos Moticoma

Reinaldo Jaime Cardoso é o membro que integrou-se, muito recentemente na banda Moticoma, que, em 2013, celebra 12 anos desde que foi criada em 2001. Como é que essa relação sucede?

Ao longo deste ano, o Centro Cultural Franco-Moçambicano promoveu uma formação de instrumentistas moçambicanos, ministrada por um artista francês, que consistia na criação de música para cine-concertos. No evento, participaram vários instrumentistas dentre os quais os membros da referida banda e Mole. “A tarefa que nos incumbiram – num dos dias – foi olhar para um cenário mudo e imaginar que som se podia criar para o mesmo. Criávamos sonâncias para acompanhar as imagens que víamos. Havia todos os tipos de instrumentos ao nosso dispor”.

Ora, quando comecei a tocar um dos instrumentos, Zandy Mundolas – o vocalista e instrumentista da banda Moticoma – “ficou impressionado com o resultado do meu trabalho. A sua colectividade já havia trabalhado com outros instrumentistas, mas nenhum deles havia gerado resultados similares aos que eu estava a criar – tocar a guitarra para produzir um ritmo tipicamente africano. Isso significa que eu posso tocar Jazz e ter dificuldades de interpretar outro estilo de música tradicional”.

Em resultado disso, como a banda estava a ensaiar para o Festival Azgo 2013, solicitou-se que Mole fizesse parte do elenco. “A experiência tem sido muito boa”. Constrangimentos e contra-sensos Reinaldo Jaime Cardoso, que se afirma um eterno sonhador, acha que é um contra-senso afirmar que o mundo das artes é muito duro. “Penso que também é muito divertido”.

“Não vejo como a arena artística é complicada. A razão é simples: as artes são o que são. Existem para que sejam vividas. Por isso, as pessoas não devem relacionar-se com elas a pensar que vão enfrentar dificuldades. Todos os que têm a ambição de se tornar artistas não devem ver a arte como uma simples forma de diversão, mas como uma maneira de ser e estar na sociedade. E que ela precisa de ser vivida, devendo haver pessoas para praticá-la, independentemente de ser difícil ou não”.

De acordo com Mole, em Moçambique a produção artística enfrenta vários constrangimentos. “É que o artista não tem um grande espaço de expressão na sociedade, e é embaraçado por uma série de obstáculos inerentes ao sistema. Sinto uma espécie de desunião da classe que se percebe a partir do momento em que a maior parte dos músicos não está associada à respectiva agremiação. Também temos falta de financiamento para o sector”. De qualquer modo, “quando se vive em harmonia com a arte, essas dificuldades não se sentem”. Por essa razão, “a minha missão é fazer e relacionar-se com ela de modo saudável”.

Facebook
Twitter
LinkedIn
Pinterest

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Related Posts

error: Content is protected !!