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Um artista contemplador da (nossa) desgraça

Um artista contemplador da (nossa) desgraça

Se trabalhar a arte através da música, da dança, do teatro, do cinema e da pintura fosse tão genuíno, ligando as vivências do povo aos seus costumes, Moçambique não seria, talvez, importador de quase tudo o que se consome nestas áreas. A 28 de Maio passado, Júlio Silva lançou um novo trabalho cinematográfico que se chama “A quem pertence a terra?”, uma história sobre a frequente disputa pela posse de terrenos no país, narrada em 61 minutos. Ao @Verdade, Júlio Silva fala desta obra e do seu amor pela sétima arte. Acompanhe….

@Verdade: Quando e como surge o amor pelo cinema?

Júlio Silva: O amor pela cinematografia surgiu em 2010. Mas um pouco antes desse ano eu fazia um programa na Televisão de Moçambique, que se chamava VIBEAT MANIA, onde produzia e compunha todo o trabalho do programa. Nessa altura, o trabalho que eu realizava fez com que ganhasse mais experiência no ofício da imagem, interacção, gestos e muito mais. Depois dessa experiência decidi fazer um filme para mim.

Na verdade, a paixão não só surgiu na televisão, mas, também, ao longo dos meus 15 anos como investigador da cultura moçambicana (…), a interpretar os ritmos, as danças tradicionais e os hábitos dos povos. Devido a essa ligação com a população senti necessidade de fazer um documentário que narrasse todas as minhas vivências junto das comunidades.

No princípio quis fazer um livro, mas depois de ter assistido, pela primeira vez, ao filme do cineasta moçambicano João Ribeiro intitulado “O Voo do Flamingo” (beseado num livro de Mia Couto) resolvi agarrar nas minhas histórias, nos contos e nos mitos que ouvi e criar uma obra cinematográfica que falasse exactamente das experiências de vida do povo. Foi daí que saiu o “Xicuembo”, o meu primeiro filme.

Na época, alguns amigos que tinham visto a obra incentivaram- me a lançá-la no mercado. Assim o fiz e teve um impacto positivo. Actualmente, é um dos filmes mais vistos em Moçambique e as pessoas quando me vêm identificam-me com “Xicuembo”.

@V: Sobre que assuntos versa o filme “Xicuembo”?

JS: O filme traz os problemas enfrentados pelas comunidades rurais, que têm a ver com o curandeirismo, a feitiçaria, a luta entre o bem e o mal e a diferença que existe entre as duas realidades.

@V: E o segundo filme, quando saiu?

JS: O filme é falado em macua e chama-se “Lágrimas”. Foi gravado na província de Cabo Delgado. Na verdade, conforme o título, eu quis trazer as lágrimas das miúdas (crianças) de Cabo Delgado que são obrigadas a interromper os estudos para se casarem precocemente. Naquela parcela do país, logo que têm a primeira menstruação as meninas casam-se, quase sempre, contra a sua vontade. Nesse filme queria desenvolver o meu projecto de cinema rural feito com o povo, falado na língua do povo e, acima de tudo, dirigido ao povo.

@V: Como terminou a ideia de ilustrar as vivências do povo, através da escrita, num livro?

JS: Na verdade, o livro está em “stand by”. Aquilo que devia estar dactilografado passou para as imagens do cinema. Falo dos mitos e do modo de viver das comunidades.

@V: O que é que o fascina no cinema rural?

JS: O cinema rural está dentro das pesquisas que faço há 15 anos. Além de investigações culturais, escrevo livros e programas sobre cultura, tudo para mostrar ao público uma parte da nossa moçambicanidade.

@V: Que impacto tem o uso das línguas locais nos seus filmes?

JS: É positivo. Não percebo todas as línguas nacionais, mas gosto muito delas. É tudo natural. Por exemplo, quando estou para gravar um filme viajo para o local – as aldeias – e fico por lá durante duas ou três semanas. Faço casting para seleccionar os artistas que normalmente se expressam na língua local, e, às vezes, sou obrigado a alterar o guião baseando-me na realidade do povo.

@V: O que o marca nas línguas bantu?

JS: Estou apaixonado por elas, principalmente as do norte do país. Elas têm sonoridade e eu gosto do som das línguas. O interesse pelas línguas locais, principalmente para os meus filmes, surgiu quando vi um estudo a revelar que 80 por cento da população moçambicana, que vivem nas zonas rurais, não sabem falar Português. Então, daí surge a necessidade de fazer os filmes nas línguas do povo, pois todo o meu trabalho é para o consumo da população.

@V: Como tem sido a sua vida nas zonas rurais, uma vez que as condições são precárias?

JS: Tenho 18 anos a viver nas aldeias. Como o que eles comem, durmo nas palhotas, tudo isso para me acostumar e poder ouvir os mitos e viver com os curandeiros. Eu tenho que lá estar sempre e, consequentemente, fui-me apaixonando pelo povo. Este é genuíno, educado e também já está acostumado à minha presença lá.

@V: Que planos tem para o futuro com esse cinema rural?

JS: O projecto é lançar cinco ou quatro obras por ano. Tenho, ainda, vários mitos por contar. E, como os filmes que realizo são de baixo custo, não é necessário ficar muito tempo para tal. Mas tudo é possível com a ajuda do Ministério da Cultura, do Instituto Nacional de Audiovisual e Cinema, da Cooperação Suíça, dos meus amigos e, nas zonas rurais, dos administradores.

@V: Como surge o filme “A quem pertence a terra?”

JS: O filme surge como forma de exteriorizar e mostrar as situações de burla de terrenos que acompanhei ao longo dos anos. E como o povo é muito humilde, deixa-se levar pelos burladores, essas pessoas que vendem um terreno a mais de uma pessoa. Quis mostrar ao povo que a terra é de todos nós. É de quem produz e de quem vive nela. E eu sou contra a burla.

@V: Quanto tempo levou a gravar o filme?

JS: Levei certa de três meses. A primeira rodagem do filme foi feita no bairro da Mafafala, onde mostro um episódio que, por acaso, vi de uma macua e um machangana que discutiam por causa do um terreno vendido aos dois. Nessa passagem o problema que derivou do terreno foi ofuscado pela diferença da língua. Cada um usava o idioma da sua natal, o que gera uma desavença maior por causa do desentendimento nas expressões. Essas pessoas só discutiam, mas não se entendiam. Nessa passagem, quero consciencializar as pessoas, principalmente das zonas rurais, a interessarem-se mais – mas sem nunca deixarem para trás os idiomas nativos – pela língua oficial, a portuguesa.

@V: Para além da disputa pela terra, o filme aborda aspectos relacionados com a justiça pelas próprias mãos e com as mulheres que não querem viver com as sogras. Que mensagem pretende passar nesses episódios?

JS: Há muitos casos a que já assisti pessoalmente e de ladrões que são encontrados pela população e depois são maltratados. Quis mostrar que a atitude não é correcta. Por isso, lá para o fim da história, no momento em que o cidadão capturado é açoitado, aparece o chefe da aldeia que acode a vítima. Não seria necessariamente uma salvação para uma posterior soltura, mas, sim, para a vítima ser entregue às autoridades policiais.

Na narrativa das mulheres que não querem viver com as sogras encontramos a desgraça dos homens – jovens – sem condições para sustentarem, sozinhos, uma família e a única forma de poderem viver com a esposa é leva-la para a casa dos pais. E aqui começa o conflito entre a nora e a sogra. Tudo porque a dona da casa (sogra) torna a outra uma empregada doméstica e não esposa do seu filho e, consequentemente, o casamento desfaz-se.

@V: Durante 15 anos a investigar os ritmos moçambicanos, que conclusão tirou sobre a situação das artes e da cultura em Moçambique?

JS: Há que admitir que o povo moçambicano é especialista a nível artístico-cultural. Nós (os moçambicanos) temos um dom natural para as artes. Principalmente as pessoas das zonas rurais, onde não importa a ciência das coisas, mas, sim, o conhecimento e as habilidades deixadas pelos antepassados. As pessoas crescem dando continuidade a essas coisas como ofício para a sua sobrevivência. E, assim, a arte se desenvolve.

@V: Como o Júlio Silva se define nas artes?

JS: Sou um homem da cultura. Aliás, um homem casado com a cultura. Durante a minha vida estive ligado à cultura: na música, no teatro, na literatura, etc.

@V: Quais são os seus actores favoritos, nacionais e internacionais?

JS: Não tenho artistas favoritos. Tenho trabalhado com quase todos os actores profissionais, principalmente, do teatro GUNGU. Às vezes, tenho trabalhado e gosto de o fazer com os artistas do campo porque eles são genuínos. Gravar um filme nas zonas rurais com actores da cidade é um pouco complicado, pois se for para fazer em changana implica dizer algumas palavras em português, o que não acontece com os “donos” da língua. Eles fazem tudo na maior naturalidade, falam como deve ser e os seus gestos são completamente puros.

@V: Com quantos artistas trabalhou na gravação do filme “A quem pertence a terra”?

JS: Trabalhei com mais de trinta actores. Na verdade, fora o facto de da circunstância de que eles tinham mais tendência para o teatro, infelizmente faltou-lhes oportunidades para serem descobertos.

@V: Que dificuldade enfrentou para transformar um homem que trabalha a terra num actor de cinema?

JS: Na verdade foi um desafio interessante. Transformar alguém cujos costumes também sofrem alterações é a coisa mais difícil. Mas, fazê-lo encarnar os personagens do filme, foi uma experiência agradável.

@V: O que podemos esperar este ano?

JS: Tenho projectos de realização de um filme em bitonga que será lançado no Festival Nacional da Cultura, a decorrer em Agosto próximo, na província de Inhambane. A obra chama-se “Montanha Misteriosa” e, mais uma vez, trago os mitos dos povos rurais.

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