Já não há greve dos profissionais da Saúde, nem dos médicos, e todos voltam para os seus postos de trabalho nas mesmas condições em que estavam, ou seja, sem nenhum ganho em relação às reivindicações que estiveram na origem da interrupção voluntária e colectiva de actividades nas unidades sanitárias de Moçambique. Fica a dúvida de como será, doravante, o atendimento hospitalar, pois os enfermeiros, os serventes e os médicos afirmaram continuar deveras insatisfeitos com os seus salários e com a alegada indiferença do Governo relativamente às suas preocupações.
Portanto, foi uma luta para coisa nenhuma. O certo é que o vínculo entre esses terapeutas e agentes de serviço (que sacrificaram os enfermos acamados nas enfermarias e outros em tratamento ambulatório, por um período de 27 dias) e o Estado vai permanecer penoso.
No último sábado, 15 de Junho, o presidente da Associação Médica de Moçambique (AMM), Jorge Arroz, anunciou, junto da Comissão dos Profissionais de Saúde Unidos (CPSU), a suspensão da greve supostamente por respeito ao povo moçambicano que estava a sofrer nos hospitais devido à ausência do pessoal que decidiu, a 20 de Maio passado, ficar em casa e, por vezes, sair à rua para exigir melhores condições de trabalho.
Arroz disse que “a justiça social e a equidade não são um sonho utópico. De utópico apenas tem a arrogância de quem não percebe (as suas inquietações). O carácter oculto e aparentemente inexistente de uma atitude insensível sobressaiu. Ouvimos, vimos e testemunhámos actos que só sabíamos existirem nos livros da História Universal e em particular de Moçambique”.
Num outro desenvolvimento, o presidente da AMM fez transparecer a ideia de que, apesar de a sua luta ter terminado de forma infrutífera, no que diz respeito à satisfação do caderno reivindicativo apresentado ao Executivo, os profissionais da Saúde deixaram alguma lição, uma vez que a sua mágoa “jamais deverá ser interpretada de forma leviana, nem as ameaças e as intimidações destruíram os seus sonhos”.
Um sofrimento minuto após minuto
Um enfermeiro é indispensável na promoção, na manutenção e no restabelecimento do bem-estar físico, mental e social de um paciente, em todos os setores, da Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) à Psiquiatria.
Contudo, em Moçambique, desde logo após a independência nacional, em 1975, altura em que os profissionais da Saúde que estavam ao serviço do colono abandonaram o sector para Portugal, a ligação entre esses técnicos e o Estado tem sido uma lástima.
O Governo parece ser incapaz de resolver, inclusive, os problemas que estorvam a efectivação do propalado atendimento humanizado nos hospitais.
A par dos médicos, são poucos os profissionais de enfermagem que progrediram laborando somente no Sistema Nacional de Saúde porque o processo montado, da formação ao local de trabalho, quase que impede que evoluam, segundo os próprios funcionários, que precisam de fazer biscates nas clínicas privadas para aumentar as suas remunerações, para além de outras “gincanas” que fazem no seu dia-a-dia para viver com um mínimo de dignidade.
“A nós dói esta situação! É uma dor incalculável, que nos atrevemos a comparar à dor de um bisturi rasgando a nossa pele sem a devida preparação psicológica e sem anestesia… sentimos esta dor minuto após minuto, hora após hora, dia após dia…”. Estas afirmações de Arroz encorajam qualquer um que alimente o sonho de seguir a enfermagem, sobretudo, a desistir dele porque esse ofício ainda é deveras desvalorizado, à semelhança do que acontece com o os polícias e os professores.
“Estamos condenados a não progredir…”
Uma enfermeira básica, jovem, com mais de sete anos de experiência, chorou diante dos seus colegas porque, segundo o seu desabafo, estava numa profissão errada. Ela acabava de constatar que os ensinamentos e a disciplina transmitidos aos instruendos pelos institutos de ciências de saúde contrastavam, de forma vergonhosa, com as condições de trabalho e com o tratamento dado a quem tem a missão de salvar vidas nas unidades sanitárias.
Segundo essa mulher, que jurou a pés juntos ter feito o curso por vocação, mas está arrependida por não ter optado por outra formação, o primeiro obstáculo com que depara um enfermeiro que acaba de chegar ao hospital é a falta de uniforme e uma categorização a vários níveis, que na prática não fazem diferença nenhuma alegadamente porque os conhecimentos exigidos são quase os mesmos.
“Os enfermeiros dividem-se em elementar, básico, médio, geral, agente de medicina e técnico de medicina. De todos estes, o enfermeiro elementar é o funcionário menos qualificado em termos de formação, enquanto o básico, o médio e outros exercem as mesmas funções, aplicam as mesmas técnicas e ganham o mesmo salário. Honestamente, não percebo por que razão o Ministério da Saúde (MISAU) ainda forma esse pessoal que está a sofrer nos centros de saúde”, disse a nossa entrevistada cujo nome omitimos propositadamente.
Outra enfermeira disse-nos que está agastada com o tipo de tratamento que é dado aos serventes. Estes são desvalorizados mas têm muita experiência, inquestionável, do que fazem e são eles que ensinam, também, os profissionais da Saúde recém-formados, sobretudos os estagiários, inclusive os de nível superior. “Porque marginalizar essa gente?”.
O desalento dos enfermeiros não tem apenas a ver com as precárias condições sociais a que são sujeitos, nem com a falta de equipamento de trabalho e tão-pouco com os baixos salários. Eles queixam-se do facto de o MISAU estar a impedir a continuação dos estudos, sobretudo nas áreas da sua vocação.
“O nosso maior dilema é que estamos condenados a não progredir nas nossas funções: não nos deixam estudar e fazer os cursos que pretendemos. Eu gostaria de me formar em Psicologia mas o MISAU diz que só posso continuar na Enfermagem e só existe uma única instituição para isso – a ISCISA – e que não está voltada para o pessoal de saúde.
É uma escola aberta a todos que queiram estar na saúde, seja por vocação ou como alternativa à falta de vaga na Educação e ao desemprego. Isso desaponta-nos”, asseverou outro técnico, que compara a Enfermagem a um labirinto, do qual dificilmente se sai, a não ser que seja por abandono da área ou pedindo uma licença ilimitada e lançar-se à sorte.
Outro profissional da Saúde considerou que já não faz sentido o MISAU continuar a formar enfermeiros básicos enquanto não são tratados como devia ser. Ele contou-nos que na altura em que foi instruído, a sua professora dizia, por exemplo, que o objectivo de se ter técnicos de categoria inferior era para cobrir o défice que o país enfrentava na Saúde.
“A estratégia foi boa mas parece que não está a dar mais porque esses funcionários não têm direito a nada, nem quando são deslocados para uma localidade como chefes. Há muitas dificuldades em actualizarmos os nossos conhecimentos abraçando cursos superiores”.