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SELO: Tenho Medo, escrito por Carlitos Manuel

Finalmente a greve foi desconvocada. Disseram que está suspensa… mas eu tenho medo.

Tenho medo de finalmente regressar ao meu posto de trabalho e encontrar os meus colegas e perguntarem-me se consegui o que queria.

Tenho medo de voltar ao posto de trabalho e dizer aos meus chefes que “estou de volta para trabalhar” e eles pensarem que vou sabotar o trabalho deles… em silêncio.

Tenho medo que nem todos consigam não guardar rancor e ressentimentos do período da greve. Tenho medo dos vizinhos a quem já disse varias vezes: “Vizinho, eu não estou a trabalhar, estou em greve, vê lá se consegues marcar uma consulta na clínica privada”.

Tenho medo que as minhas filhas me perguntem: “Pai vais trabalhar? A greve terminou? Então vamos ter a nossa casa própria, nosso carro para nos levar à escola, passear, e finalmente podermos estudar naquela escola privada!”

Tenho medo de voltar ao serviço ainda sem uniforme, sem bata branca, sem sapatos brancos, sem cinto branco, sem calças e sem camisa branca. Tenho medo de dizer aos doentes que “este medicamento aqui não existe, vai comprar na farmácia privada”.

Tenho medo porque ele, coitado, não percebe que não consegui o que queria. Ele não percebe que da minha luta não consegui melhorar as minhas condições de trabalho, não percebe que nada mudou.

Tenho medo que ele pense que estou em greve silenciosa. Aliás, dizer que não mudou nada é um exagero, a todos aqueles problemas que sabemos de sobra agora vêm adicionar-se outros, ódio, perseguição, incompreensão… e medo… muito medo. Medo de assumir uma culpa que não tenho… medo do medo que os meus chefes têm de mim.

Tenho muito medo de que o doente pense que estou a sabotá-lo, de que estou na tão propalada greve silenciosa ao algaliar-lhe com uma sonda nasogástrica mas, sem gel de lidocaína (anestesia).

Tenho medo de que me morra um doente com anemia gravíssima, porque o laboratório não tem reagentes para testar sangue para transfusão. Tenho muito medo de que pensem que ele morreu porque estou em greve silenciosa.

Tenho medo de dizer ao paciente: “Volte amanhã, hoje não temos material para pensos”, tenho muito medo de que ele não entenda que não há condições para esterilizar material para ele, que não estou em greve silenciosa…

Tenho muito medo de voltar a tratar as convulsões com rezas e preces aos deuses, porque não há nenhum anticonvulsivante…

Tenho medo de voltar a estimar a Tensão Arterial dos pacientes porque não há aparelho para avaliar essa tensão.

Tenho medo de continuar a medir a temperatura corporal com o dorso da minha mão, porque não há termómetro… tenho muito medo de que os pacientes pensem que não lhes medi a glicemia porque estou em greve silenciosa.

Tenho medo de regressar ao hospital, de saber que o Gabinete Médico ainda não tem balança, não tem blocos de receita, não tem livros de registo, não tem lanterna ginecológica, não tem lençol na marquesa.

Tenho muito medo de dizer a uma mãe que traz uma criança muito doente. “Tens dinheiro? O teu filho está grave e tem que ir ao hospital de referência, aqui não temos carro. Se tens dinheiro vai de “chapa” – a única coisa que posso fazer neste momento é passar-te uma guia”.

Tenho medo de que ela não entenda que o sistema não tem carro e não é porque estou em greve silenciosa.

Tenho medo de administrar ao paciente o medicamento que há e não o que dele precisa.

Tenho medo de que ele não perceba que não tenho alternativa. Não estou em greve silenciosa. Medo de continuar a tratar meningite confirmada com cotrimoxazol suspensão oral. Porque não há injectáveis por perto… e isso pode ser interpretado como greve silenciosa. Mas não é greve silenciosa, é falta de medicamento adequado para a situação.

Tenho medo de chegar tarde ao serviço, porque o “chapa” não veio a tempo, isso pode ser interpretado como uma greve silenciosa.

Tenho medo de que os mesmos que ignoraram o meu grito de socorro para melhorar as condições de trabalho queiram relatórios satisfatórios do desempenho das minhas actividades. E se este relatório não for ao encontro do que querem ouvir…

Tenho medo de que pensem que estou em greve silenciosa.

Tenho medo de que a tão propalada greve silenciosa seja usada como cavalo de batalha no combate aos indesejados, àqueles que tiveram a coragem de dizer “criem condições para eu servir melhor”, deixando de lado todo um monte de doenças de que padece o sistema.

Tenho medo de que os que se acobardaram, “puxando o saco dos chefes”, lhes sejam entregues a faca e o queijo para humilhar aqueles que acreditaram que é possível trabalhar e viver melhor.

Tenho medo de ficar doente e não poder trabalhar, porque isso pode ser visto como uma greve silenciosa. Tenho medo que você que acaba de ler esta mensagem tenha medo de a partilhar porque será conotado como conivente com a greve silenciosa.

Tenho medo da greve silenciosa…

Cumprimentos.

Carlitos Manuel

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