Vivia, em terras de Sena, em tempos não remotos, uma donzela virgem cujo ventre trazia gravadas as cores da lua que, em noites límpidas e cheias de estrelas, se deflagravam em hexágonos, povoando de luz a caniçada, encurralando nas espumas do Zambeze os mistérios dele próprio saídos, os quais se estendiam por aqueles descampados, alimentando o auge de dúvidas e discussões sérias sobre a longevidade desse rio, a qual, no jurar a pés juntos sobre as almas habitantes nos seus bancos de areia e matope mais profundos dos mais vividos em noites de batucada serena, era referida a partir da contagem infinita de colheitas de mapira e mexoeira em todo aquele vale verdejante; e línguas dos mais emotivos apontavam a idade desse grande rio, venerado pelos espíritos ali existentes, saídos de vidas de inúmeras gerações, como sendo muito anterior à das montanhas agrestes e profanas, que, impiedosamente, o estrangulavam entre as vilas de Sena e de Dona Ana.Tchanaze: a donzela de Sena
Tchanaze é o título do surpreendente romance de Carlos Paradona Rufino Roque, lançado recentemente em Maputo, sob chancela da Associação dos Escritores Moçambicanos. Depois do seu primeiro livro – de poesia – intitulado “A Gestação do Luar”, Paradona desafiou-se a si próprio e, em cerca de 200 páginas, faz-nos discorrer serenamente pelo vale do Zambeze, inspirado em histórias contadas à volta da fogueira, nas demandas regulares que se faziam às margens do rio e seus confluentes, nas armadilhas de peixes e noutras histórias carregadas de mistérios. É um livro – que também – não só exalta o deslumbramento do grande rio, assim como se curva perante a beleza da mulher personificada em Tchanaze.
Sobre os mistérios, Paradona conta-nos nesta sua obra o episódio inacreditável de Nhamphadza, que, depois de morto, é encontrado, passado um tempo, num canavial a cortar cana. É este mesmo Nhampadza que não reconhece ninguém e nem ele próprio sabe quem é. Sobre esta passagem do livro de Paradona, perguntamos ao autor se acreditava nesses mistérios. “Eu não posso provar que o Nhampadza que tinha sido visto depois de morto era ele mesmo. Mas eu parto de uma base de histórias que foram sendo contadas no vale do Zambeze, e toda uma série de vivências, para fazer esta ficção”.
Afinal de contas, quem é Tchanaze?
“Tchanaze parte duma construção mística, simboliza o que o vale do Zambeze tem de belo. No vale do Zambeze as pessoas são solidárias, mas ao mesmo tempo temem-se. Durante o dia estão juntas, mas quando uma das famílias recebe um bem, como por exemplo missangas, ninguém pode presenciar esse acto”.
Paradona revelou-nos que, para se evitarem possíveis invejas e ódios, aqueles que vão usar essas missangas só podem aparecer com elas de manhã, como se elas já existissem. “Há união no Vale do Zambeze, mas também há sempre uma inveja latente. A privacidade está presente nesta união”.
Mas Tchanaze não será apenas o espelho do Vale do Zambeze, como o diz o próprio: “Será que histórias como as de Tchanaze acontecem apenas do Vale do Zambeze? Não haverá no Rio Limpopo? Não haverá um Cossa que terá desaparecido no rio Limpopo ou Lúrio, ou Umbeluzi, ou Incomati? Em Moçambique há muitas histórias que se podem confundir com Tchanaze”
Estava-se no início da queda das primeiras chuvas da época, quando, em Inhangoma, lá para as terras de Mutarara, se fixou uma mulher de quem nada se sabia. O que se soube, isso sim, era que se tratava duma mulher nunca antes vista por ali, pois a sua beleza era gémea de lua cheia eos seus seios envoltos em missangas de todas as cores ameaçavam penetrar nos olhos de homens e rapazes da região. E tratava-se de uma mulher-mistério, pois nem os seus amigos ou familiares eram conhecidos de ninguém e vivia sozinha à beira de um dos confluentes do Zambeze. A mulher, embora de virgem não se tratasse, já arrebatava para si os melhores comentários da rapaziada da região porque não eram outras as tatuagens do seu ventre senão as relíquias duma fogosa e cheia de sensualidade, que encantavam homens e almas ali apaixonadas.
Tchanaze é um livro que Carlos Paradona Rufino Roque levou muito a escrever e, segundo o autor, “se ele criar prazer naqueles que o forem a ler, ficarei muito feliz, mas também se desencadear ira, ficarei feliz, isso significa que as pessoas leram o meu livro. A missa missão está cumprida”.