Dizem que ninguém é capaz de escrever sobre a água. Mas Carlos Paradona Rufino parece pretender desmistificar o mito: escreve sobre as águas. E que águas? As caudalosas águas do nosso Zambeze.
O escriba foi a alma do Rio, às margens da ribeirinha vila de Sena, e de lá emana a caligrafia que preenche as 201 páginas deste livro que tendes em mão.
Como podem ver. Este feito não é comum a todos os homens. E para tanto, Paradona vestiu a pele de crocodilo, vestiu a pele na magia dos feiticeiros de que se fala e imergiu no fundo do Rio, de cujas entranhas pariram a Tchanaze, a donzela, que morreu sem ter experimentado a aventura do corpo, o amor, por assim dizer, virgem.
Quando lemos este livro somos levados pela mão do autor a vários estágios decorrentes da sua concepção. O primeiro é a estrutura do Romance tradicional, que ele tenta desmistificar, rompendo todos os clichés e cânones e emprestando ao livro uma naturalidade sem a qual Tchanaze: a donzela do Sena, não seria a tal donzela que todos nós ao lermos o livro somos integrados nele, como “vouyeres”. E Paradona ao fazê-lo nutriu-se de um segredo: o Romance moderno esvazia todo esse rendilhado atribuindo-se uma forma natural, por isso, mágica de escrever sobre o Rio.
O segundo estágio que encontramos tem que ver com o universo. O narrador que veste de sapiência é uma voz que se confunde com a realidade. Esta Tchanaze de que Paradona fala, alguma vez a teremos visto em Sena, no Búzi, no Rio Rovuma, ou mesmo no Save. É uma Tchanaze personagem que se transfigura, recusando morar neste livro. Porque de mistério está feita esta Tchanaze que engoliu muitos corações e morreu tal como Kilomko, de Carneiro Gonçalves, que foi tomado por Maliza.
O terceiro estágio deste livro é o repto dos livros que o precederam, a temática fundada na voz do Rio Zambeze, que começa a despertar e a gerar uma comunidade de escreventes. No esteio do Rio Zambeze, do lado moçambicano, nasceu uma comunidade de escribas em que Paradona se incorpora. Convido-os a lerem Contos e Lendas de Carneiro Gonçalves, Ualalapi, de Ungulani, Mulungu, passe-me a modéstia, de mim próprio, Niketche, Paulina Chiziane, Chingondo, de Daniel da Costa, “Casamento de Gorongosa com feitiço ou identidade?” (Carlos Roque), “A Rainha do Bem e Escola de Iniciação a Identidade”? (Carlos e Maria Bernardete Cipriano Roque), “Nzerumbawiri” e “Mphyanga”, estas duas últimas de José Pampalk.
Há na literatura moçambicana uma comunidade de escribas abraçados ao Rio Zambeze, como o há uma comunidade insular, à volta da Ilha de Moçambique.
É pois, o que se me oferece dizer: um Zambeze de feitiços, magia negra, dos prazos, das donas, dos régulos, das mulheres que têm poderes sobre os parceiros, e dos homens que têm o pulso sobre elas. E percorrer Tchanaze: a donzela sena é a revisitação deste corpo ribeirinho, fluvial do amor, do sexo, e do erotismo que preenchem estas 200 páginas.
Atesta-o:“Vivia, em terras de Sena, em tempos não remotos, uma donzela virgem cujo ventre trazia gravadas as cores da lua que, em noites límpidas e cheias de estrelas, se deflagravam em hexágonos, povoando de luz a caniçada, encurralando nas espumas do Zambeze os mistérios dele próprio saídos, os quais se estendiam por aqueles descampados, alimentando o auge de dúvidas e discussões sérias sobre a longevidade desse rio, a qual, no jurar a pés juntos sobre as almas habitantes nos seus bancos de areia e matope mais profundos dos mais vividos em noites de batucada serena, era referida a partir da contagem infinita de colheitas de mapira e mexoeira em todo aquele vale verdejante; e línguas dos mais emotivos apontavam a idade desse grande rio, venerado pelos espíritos ali existentes, saídos de vidas de inúmeras gerações, como sendo muito anterior à das montanhas agrestes e profanas, que, impiedosamente, o estrangulavam entre as vilas de Sena e de Dona Ana”.
Depois do seu primeiro livro – de poesia – intitulado “A Gestação do Luar”, 1992, Paradona oferece-nos esta surpresa. Exilado em Maputo, Paradona mais não quis senão enraizar-se, porque a literatura é feita de uma herança: entrosamento, estranhamento e enraizamento.
Quer dizer, a literatura é feita deste vício fundado no rastilho do próprio ser, a procura do seu passado, com dúvidas que se vão esclarecendo, com inquietações que se vão conformando, mais ou menos, a medida em que o presente não o pode alterar, e de certo modo, expondo-o ao futuro. Talvez deva dizer mais, a presença de Paradona aqui persegue a tradição: devolver o livro à origem. Origem esta marcada de missagas, tatuages, e que se sedimenta na mestiçagem com outras culturas, dos zulus, dos mfecanes, etc. Origem esta dos ritos de iniciação, dos botes, que suscita um David Livingstone a caminho dos seus descobrimentos, do Padre Dom Gonçalo da Silveira.
Do que Paradona ficcionou as perguntas que se nos percorrem são as mesmas que percorrem uma criança. Tchanaze é o corpo erótico, poético, do Zambeze. Ou se quiserem, o território do Eros e Thanatus. Tchanaze é a dança Utsi, a mandoa, dos mortos que vão e voltam entre dois mundos, num princípio de vasos comunicantes de que nos fala Gustave Flaurbert. Eis, pois, a magia que povoa aquele Rio.
“Estava-se no início da queda das primeiras chuvas da época, quando, em Inhangoma, lá para as terras de Mutarara, se fixou uma mulher de quem nada se sabia. O que se soube, isso sim, era que se tratava duma mulher nunca antes vista por ali, pois a sua beleza era gémea de lua cheia e os seus seios envoltos em missangas de todas as cores ameaçavam penetrar nos olhos de homens e rapazes da região. E tratava-se de uma mulher-mistério, pois nem os seus amigos ou familiares eram conhecidos de ninguém e vivia sozinha à beira de um dos confluentes do Zambeze. A mulher, embora de virgem não se tratasse, já arrebatava para si os melhores comentários da rapaziada da região porque não eram outras as tatuagens do seu ventre senão as relíquias duma fogosa e cheia de sensualidade, que encantavam homens e almas ali apaixonadas”.
Uma surpresa que encerra este livro é a sua linguagem: rente à fala. Há uma voz que nos vem de fundo, misteriosamente. Magicamente. É a voz do Rio que se escreve a si, a nosoutros. E por fim dizer que a Tchanaze que morreu no princípio do livro é imortalizada, e por conseguinte continua a fazer parte da vida. Talvez, depois deste cerimonial, desta “m’bamba”, cruzemos com ela algures na rua acordando-nos desejos, incendiando nossos corações, paixões.