Eis que regressamos ao dilema de saber se o suicídio será um acto de coragem ou o último feito de um cobarde. Se fosse cobardia, não sei se alguém teria coragem de o afirmar com sonoridade em relação ao jovem que pôs termo à sua vida nos meados do ano passado na cidade da Maxixe, usando uma faca para cortar o seu próprio pescoço. Como se estivesse a degolar um cabrito, que neste caso seria ele mesmo.
Segundo o Índice de Progresso Social referente a 2014, em Moçambique, a taxa de suicídio tem vindo a subir de forma alarmante nos últimos tempos. E especialistas apontam, para o efeito, factores tais como a negligência em relação a distúrbios mentais que apoquentam algumas pessoas.
Na quinta-feira passada, 25 de Abril, a cidade foi vergastada – uma vez mais – pela chocante notícia de suicídio de um homem paralítico, que passou os últimos dias da sua vida sentado numa cadeira de rodas, sem poder sonhar com a liberdade de caminhar na vertical.
É uma figura que já experimentou o sabor de se locomover com os seus próprios membros naturais. Nasceu e cresceu normalmente. Abraçou o trabalho em plena juventude. Conquistou amigos com a sua forma de ser. Mas, inesperadamente, foi atacado por uma trombose que lhe tirou os movimentos motores.
Bachir não acreditou que a partir daquele dia nunca mais se levantaria. A sua vida mudou completamente e começou a construir-se dentro dele uma ferida espiritual que, no lugar de se ir sarando com o tempo ou com os medicamentos, foi crescendo. Porque já não podia fazer o que fazia quando era um homem normal. Via os amigos continuando a correr ao encontro do trabalho, da vida e do lazer. E ele no mesmo sítio, ou seja, sentado irreversivelmente numa cadeira de rodas. Olhando à sua volta sem poder fazer nada.
Assim como estava, tinha, pior do que tudo, de depender de terceiros para fazer fosse o que fosse. Para satisfazer as necessidades biológicas tinha de ser levado por alguém. Precisava de outras mãos para tomar banho. Estava completamente dependente, ao contrário daquele Bachir que corria livre como as gazelas em plena savana. Que arrastava a “asa” para as donzelas.
O seu mundo estava completamente modificado. Transtornado. Virado para baixo. Em cada dia Bachir percebia que da cadeira de rodas jamais sairia. E mesmo assim queria sair de casa. Queria andar por aí sentindo o ar puro que circula livremente no bairro de Nhapossa onde vivia. E saía, movendo-se – com ajuda de alguém – no instrumento ao qual estava entregue. Para toda a vida. Ele conversava com as pessoas e a fala do homem estava requebrada. O olhar já não tinha vida, e ninguém percebia – nem podia perceber – que para ele a vida já não fazia sentido.
O suicídio inesperado
Era normal este homem meter-se no “chapa” e ir à cidade, levando a sua cadeira de rodas. Os “chapeiros” compreendiam-lhe. Bachir queria passear. Queria sentir os cheiros que inalava todos os dias quando andava. Com as suas própria pernas. Queria ver as pessoas. E esse era seu direito. Inegociável. Ia e vinha, sem qualquer problema. Ninguém se espantava com a presença de um paralítico dentro do pequeno automóvel, nem com um homem que parecia um actor desesperado, sentado numa cadeira de rodas.
Mas ele estava cansado de tudo aquilo. As lembranças da vida roíam- -lhe em cada partícula do tempo. Recordava-se do jovem que corria em liberdade. Das meninas que lhe piscavam o olho com amizade e paixão. Do copo que bebia para tagarelar com os amigos. Do trabalho que fazia para ganhar dinheiro e não depender de ninguém. De tudo isso. Bachir olhava para si e sentia que não passava de um fardo. Inútil. Então decidiu acabar com todo aquele martírio.
Tinha umas moedas no bolso. Mandou vir um táxi, dentro do qual se introduziu sem que o taxista soubesse que levava um homem que fazia a sua última viagem. Ele quis fazer as coisas à luz do dia, para que tudo ficasse às claras. Por isso escolheu partir ao princípio da tarde. Pediu ao condutor que o deixasse na ponte-cais, onde seria o seu cadafalso. Depois de pagar os custos da viagem, desceu e, com a ajuda do taxista, sentou-se na maldita cadeira de rodas. Pela última vez.
Esperou por um tempo até que as condições estivessem criadas segundo os seus planos. Saltou cá para baixo e as pessoas que andavam por ali não se aperceberam de nada. Ninguém suspeitou. E pelo que tudo indica, ninguém viu nada. Bachir despediu-se do instrumento que o acolheu durante alguns anos. Rastejou como um lagarto humano e deixou-se cair à água pelo lado em que a ponte não tem barreira. E assim tudo se consumou.
Perguntas sem resposta
Contámos com algum detalhe o caso do Bachir apenas por ser o mais recente. E também por nos lembrar que na cidade de Inhambane o fenómeno dos suicídios tem sido recorrente. Na semana anterior a esta, houve mais um suicídio, ainda no município de Inhambane, de um homem que escolheu o enforcamento para se matar. E foi no mês de Março que o jornalista da Rádio Moçambique em Inhambane, Bernardo Madjenje, também se suicidou por via do enforcamento. O número é assustador para uma cidade tão pequena, o que vem levantar os fantasmas do ano passado em que fomos sacudidos por este vendaval do diabo.
Na Direcção Provincial da Polícia de Investigação Criminal disseram-nos que os problemas passionais têm sido os principais motivos que levam as pessoas ao suicídio. Há indivíduos que não suportam traições, preferindo vias não muito apropriadas para resolver um problema. “O suicídio nunca foi solução para nada”.
Por exemplo, num caso recente, ainda na cidade de Inhambane, uma mulher que se sentia traída pelo marido decidiu imolar-se, depois de ter bebido o próprio produto – petróleo – que serviu para o acto terrificante. O acontecimento chocou profundamente os munícipes, que ainda comentam o caso cada vez que mais um suicídio ocorre.
Demónio
Para algumas pessoas o suicídio só pode vir de uma força maligna. De alguma coisa que domina profundamente até você perder a irracionalidade. “Acha que o jovem que se degolou na Maxixe estava em pleno uso das suas faculdades mentais? Eu não acredito. Somos africanos e em África temos o nosso submundo, que nos manipula e nos subjuga”.
Em relação à mulher que se imolou, o demónio que se apossou dela é tão mau como o que usou o jovem da Maxixe. “É inaceitável, em termos humanos, que alguém se regue com petróleo para depois se incendiar. Sem que nos tenhamos incendiado alguma vez, cada um de nós imagina, com certeza, a dor de uma queimadura daquelas proporções”.
“Mas as pessoas que estão assustadas com este fenómeno, se formos a ver bem as coisas, não acompanham a evolução da sociedade. Inhambane já não é a mesma cidade. Nos tempos as mulheres daqui eram muito tímidas. Faziam as coisas de forma implícita. Tinham medo dos maridos. Agora não, tudo mudou. Elas confrontam os seus cônjuges. Em muitos casos chegam a humilhá-los. Então tudo isso cria uma certa instabilidade emocional nos homens que não estão preparados para ter as mulheres lutando ombro a ombro com eles”.
“Você não tinha mulheres a suicidarem-se, mas hoje isso acontece. Significa que estamos a ser levados pela dinâmica da vida, uma vida que está a ser comandada pela força do mal, onde a lei da selva é cada vez mais evidente. O que nos obriga a reiterar que temos o demónio à nossa frente”. E enquanto as perguntas se levantam e os debates se fazem em todas as esquinas da cidade, o que subjaz é que podemos ser sacudidos por mais um suicídio amanhã.