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KERYGMA: Stewart Sukuma, um autógrafo e uma cizânia – por Cremildo Bahule

Normalmente, há fases da vida em que já não vivemos para nós. Por causa dos nossos actos e das nossas certezas chegamos a latitudes que menos esperamos. Em alguns momentos, boas. Noutros, más. Como dizia Carlos Cardoso: «Não é preciso ser famoso / nem grande sabichão / com um pouco de esforço / cada bicho ultrapassa a sua própria condição». Stewart Sukuma, com esforço, coragem e algumas gandaias, conseguiu ultrapassar a sua condição e agora está numa latitude em que é uma das «figuras» da música moçambicana. De Cuamba caminhou para reluzir e fazer parte desse grande arco-íris que é a arte de cantar. (Não há espaço aqui para falar da sua qualidade musical, pois o objecto do artigo é outro: o autógrafo de cizânia).

Há dias, Sukuma colocou um comunicado na sua página oficial do facebook pedindo desculpas por não ter consentido dar um autógrafo e tirar uma foto com uma menina, de 12 anos de idade, de nome Dalessa. Para justificar a sua atitude disse: «recusei-me a fazê-lo achando que poderia, com isso, arrastar mais pessoas para o local onde estava, algo que naquele momento não me agradava». Por causa desta postura, críticas ofensivas, maioritariamente, caíram para cima de Sukuma.

De todas as apreciações que incidiram sobre si a que mais gritou foi: «Sukuma é embaixador de boa vontade do UNICEF para ajudar as crianças, então ele deve fazer esse papel onde estiver e não devia rostir a pequena Dalessa por causa da sua presunção». Por sentir o peso da condenação, o músico pediu desculpas aos seus fãs e reiterou que o seu acto de responsabilidade social continuará mais forte no apoio à criança desfavorecida em Moçambique e no mundo. E para restituir a alegria da menina Dalessa, Sukuma prontificou-se a fazer um espectáculo em Chókwè em homenagem à menor e tirar uma foto especial com ela.

Sukuma errou, é um facto. Acredito que há várias maneiras de contornar essa situação. Pedir desculpas é uma atitude louvável. Emocionada, a petiza dirigiu-se ao seu ídolo. Será isto uma falta de respeito, visto que Sukuma estava no seu momento de lazer, ou «as crianças de hoje são ousadas e sem apreço em relação aos mais velhos», conforme avançam algumas correntes de opinião? O tio da menina, que atiçou este caso queria denegrir a imagem do músico ou estava a defender a menina e a chamar à consciência o músico?

Neste enredo há campos de debate inesgotáveis que se abrem e que nos devem ajudar a reflectir sobre a postura dos nossos músicos perante os seus fãs – o sentido inverso é válido. Quando somos conhecidos e no superlativo da fama, consideram-nos «figuras públicas» (termo baralhado e redundante). Somos obrigados a ser mais altruístas e mais mecânicos nas nossas acções. Já não vivemos a nossa vida como queremos.

Vivemos para agradar aquele que compra o nosso disco, a nossa obra de arte, o nosso livro, que vê as nossas peças teatrais e gosta de ir ao campo de futebol para nos ver a jogar e marcar golos. Ou seja, a notoriedade torna-nos – por meio da música, neste caso concreto – elementos sociais que simulam disposições e linguagens. Se eu sou defensor de animais não devo andar a atropelar cães e gatos na rua. Se assumo que sou vegetariano, as minhas atitudes devem ser coerentes ao meu pronunciamento.

O outro elemento de reflexão é a ideia que nós temos de «celebridade». É preciso que comecemos a usar filtros para purificá-la. Antes de Sukuma ser celebridade é uma pessoa. Como pessoa e ser social precisa dos seus momentos de lazer e tranquilidade. Tem o direito, como qualquer outro cidadão, de ir à praia, de comer a sua mucapata no Dolce Vita ou nas barracas do Museu. Em Moçambique, as nossas celebridades ainda têm a sorte de circular à vontade e sentarem, se quiserem, em cima de um muro e travar uma cavaqueira.

Contudo, Beyoncé, Seu Jorge, Sting, Justin Bieber, Sade, por exemplo, não têm esse privilégio porque os seus fãs, nessas sociedades, são amos dos artistas e têm atitudes possessivas. Mas, também, existe o lado avesso e ensurdecedor da fama: músicos que andam com o nariz íngreme, com a cara cheia de armaduras de tal sorte que para sorrirem é preciso que se utilize o escopro e o martelo. Estes últimos parecem viver num mundo fechado. De castidade. E depois, um dia, revelam-se indecorosos nas suas acções como o que aconteceu com aquele que é «amigo de Zuma».

Termino a minha redacção com duas simples observações. Primeira, para nós os apreciadores, a música é uma profissão como todas as outras. Nessa lógica é necessário respeitar o direito de quem a faz e honrar os seus momentos de privacidade e direito pessoal. Acho que é uma falácia, que povoa o imaginário de muitos de nós empolgados por um músico, ao pensar que ele, por ser notório e estar na voz do povo, deve ser tratado como um divo.

Se assumirmos que ser músico é uma profissão, então há profissionais em Moçambique – advogados, economistas, professores, médicos para citar exemplos – com melhor notoriedade e com mais cacau, sim, com mais dinheiro, que muitos músicos que pululam nas nossas televisões (embora não tendo dinheiro para encher o tanque dos carros bonitos que nos mostram no seus vídeos).

Segunda, para os músicos, sei que vocês são humanos e precisam da vossa intimidade. Contudo, compreendam logo que pelo vosso ofício não são divindades e ninguém deve elevar-vos a essa categoria ou deve-se ajoelhar, sempre que vos vê, porque as vossas caras estão na televisão a ostentar um brilho que ofusca a realidade do cidadão que luta contra a pobreza absoluta.

Estamos conscientes de que não é fácil separar o músico da pessoa que precisa de privacidade. Ser dois em um ou um em dois é a sina que os músicos carregarão para o resto da vida. Por isso, quanto menos rastos de incómodo e vergonha deixarem com as suas atitudes, nós agradecemos e as crianças (como Dalessa) ficarão felizes.

P.S.: Sukuma, todo o ser humano erra. Louvo-te pelo gesto: pedir desculpas à menina. Espero que no novo ano a tua atitude filantrópica se torne mais frutífera e que contentes as crianças com a tua música e gestos. Aguardo surpresas do teu novo disco para dançar até me embriagar.

Cremildo Bahule

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