Há um coreógrafo, em Maputo, que expele utopias. Abespinha-lhe a forma como – na terra de Augusto Cuvilas – se olha para o corpo humano, e adverte para o facto de que além de orgias sexuais, “também é um espaço de criação artística”. Sobre o homossexualismo – que procura espaço de afirmação em Moçambique – diz que “é um ‘problema’ escondido”. Respeitando-se os limites existentes entre os homossexuais e os heterossexuais, admite a coexistência pacífica. Receia, porém, que o mundo se torne gay. Conheçamos as Utomipias de Virgílio Sitole…
O criador da coreografia Utomipias, que o estimado leitor terá a oportunidade ver nos dias um e dois de Agosto, no Cine Teatro África, em Maputo, é um homem decidido. Reconhecendo a resistência à mudança social – “está a ser difícil que no meu país se olhe para o corpo humano, como um espaço de criação artística. Ele é abusado como objecto sexual” – é capaz de montar uma coreografia utilizando bailarinos nus.
Ainda bem que a ineficácia da política cultural e o seu fraco poder económico para tamanho investimento – diria um bom conservador – lhe impõem barreiras. Afinal, acrescentaria, como aconteceu com a obra de Augusto Cuvilas, “Um Sol Para Cinco”, isso seria um choque nacional. Para a criação artística, um pouco de loucura vale a pena. Pela arte, Virgílio Sitole criou um ritual: “Por meia hora, todos os dias, sentindo ou não necessidades, permaneço na pia da casa de banho e viajo com a coreografia que já existe em mim ou que pode vir amanhã”.
É um devotado apreciador do corpo humano e no âmbito das Utomipias, a sua nova criação coreográfica, até pesquisas de especialidade fez. No entanto, o seu momento de inspiração é outro mistério do corpo humano – o organismo. “Na verdade, não sei. Isso é um assunto quase inefável, mas, como estamos entre nós, posso explicar que quando estou a fazer sexo, com uma mulher, o meu momento de inspiração assemelha-se ao que acontece no orgasmo, em que cada pessoa possui a sua forma peculiar de se sentir”.
Uma sociedade despreparada
Utomipias é uma coreografias subdividida em duas partes – Corpus e Toleranse – em que a sensualidade, a sexualidade, o homossexualidade, o nudismo exposto na rua e em palco, o (des)respeito à vida e a intolerância formam um misto de temas em discussão.
A parábola dos produtos alimentares, como o tomate, recém-criada – a partir da qual Virgílio explica o seu comportamento social em relação ao sexo – tem a sua importância na percepção dos seus motivos artísticos. “Depois das festas do fim do ano, no Mercado Grossista de Malanga, o preço do tomate – a exemplo de outros produtos frescos – agrava-se e ninguém o compra. Algum tempo depois, os produtos apodrecem e os revendedores despejam-nos. Já não têm muito valor e, por isso, qualquer pessoa pode tê-los como quiser. Isso é o que acontece com o sexo, nos dias actuais”.
Visivelmente constrangido, o coreógrafo diz que “não sei se existe uma expressão adequada para classificar o que está a acontecer com o sexo. A situação é quase similar ao que acontece agora que existem as três ou quatro cervejas vendidas por 100 meticais”. Ou seja, “o sexo é dado ao desbarato e feito de qualquer maneira de modo que, praticá-lo, é suspeito porque, ainda que seja bom, depois traz-nos situações calamitosas. Porque é que é muito promovido?”
O problema é que quando, em nome da arte, se exibe o nudismo (no bailado ou num concerto musical) chega uma fase em que o espectador – nós que trabalhamos com as manifestações artístico-culturais incluídos – não percebe a fronteira entre a arte e a exibição de partes íntimas do corpo humano por puro prazer. Como resolver este problema?
Talvez seja necessário um debate artístico sobre o assunto. Mas, por outro lado, há contexto, no país, para a exploração do corpo humano como uma dimensão de criação artística? O artista afirma que o corpo humano é um lugar de produção de arte – mas a tese não é defendida pelo cidadão comum.
“As condições que tenho – para trabalhar – não me permitem expor a minha obra do jeito como a planeei e gostaria que fosse. Tenho de fazer a exposição da criação, respeitando os apoios que tenho. Se eu pudesse arranjava um palco e expunha a obra – com os bailarinos nus – como ela foi concebida. Sei que isso iria criar debate e que algumas pessoas iriam vê-la só para confirmar os rumores que se gerariam”.
Uma cumplicidade social
Nos dias que correm, há uma moda que – afectando, também, os homens – se caracteriza por deixar partes íntimas do corpo humano expostas. E as pessoas gostam. Ou seja, “a sociedade critica o nudismo em surdina porque é seu cúmplice. Isto significa que as pessoas gostam de ver outras nuas. No entanto, o que me intriga é que quando o corpo humano é exposto no palco ou na tela como uma obra de arte, esta mesma sociedade contesta”.
Convenhamos que, como afirma o coreógrafo, “há contornos bem desenhados do corpo feminino nos quadros de Malangatana ou de Mankew, mas esses artistas não estão, necessariamente, a falar da sexualidade. Eles narram algum facto”. Nesse sentido, nessa criação coreográfica, “eu não estou aqui para expor o sexo, mas quero fazer um bailado nu. E porque o sexo está no corpo, ele é visível”. “Quando se trata de uma obra de arte, as pessoas contestam. No entanto, no dia-a-dia, vemos obras de arte não assumidas como tal – a exibir o nudismo – que a sociedade aprecia”, diz.
O receio do artista
Porque a peça Utomipia é também um espaço de discussão sobre as liberdades (ou direitos) sexuais, Virgílio Sitole explica que “estou em conflito relação à minha educação do berço e àquela que tive na sociedade sobre o assunto: para onde é que esta liberdade sexual nos leva?” Ou seja, “receio que o mundo, no futuro, seja habitado por homossexuais apenas. Hoje, eles estão a adoptar filhos e continuarão a fazê- -lo amanhã. Estou com medo de que estas crianças sejam homossexuais”.
O coreógrafo afirma que “partindo dos princípios que me foram ensinados na família, não consigo explicar como é que esta relação homem-homem e mulher-mulher funciona”. De qualquer modo, “graças à formação académica e social do dia-a-dia, aprendi que as pessoas têm as suas liberdades. Elas podem comportar-se como quiserem – mesmo no campo sexual – o que devem saber é respeitar os limites que existem”. Isto significa que “apesar de respeitar, como não gosto da sua homossexualidade, vou criar barreiras – não de natureza social mas – de relacionamento sexual com esta pessoa”.