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SELO: O retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador – Por Homero Mattos Jr.

Se seu nível de vida é elevado, é porque o do colonizado é baixo; se pode beneficiar-se de mão-de-obra, de criadagem numerosa e pouco exigente; se obtém tão facilmente postos administrativos, é porque estes postos lhe são reservados e porque o colonizado, deles, está excluído; quanto mais respira à vontade mais o colonizado sufoca. Pirâmide dos tiranetes: cada um, socialmente oprimido por outro mais poderoso, encontra sempre um menos poderoso em quem apoiar-se, tornando-se por sua vez tirano.

A multidão de mendigos, as crianças que perambulam semi-nuas, a evidente organização da injustiça, o escândalo econômico, político e moral… Para viver sem angústia, é preciso viver distraído de si mesmo e do mundo; é preciso reconstruir em torno de si os odores e os ruídos da infância. …simulando nada ter visto da miséria e da injustiça que entram pelos olhos; empenhado apenas em conseguir seu lugar, obter sua parte… Subitamente providos de um título surpreendente… Adquirem tão desmesurada confiança em si mesmos que se tornam estúpidos.

Olhando mais de perto, não descobrimos, em geral, além do fausto ou do simples orgulho, senão homens de pequena estatura moral. Políticos, encarregados de modelar a história, quase sem conhecimentos históricos, sempre surpresos com os acontecimentos, recusando os fatos ou incapazes de prever…

Como privilegiado não legítimo reivindica seu lugar e o defenderá por todos os meios. Triunfa de si mesmo uma imagem que condena. Sua vitória de fato, portanto, jamais o satisfará: resta-lhe lavar-se de sua vitória, e das condições nas quais foi alcançada. (então) esforça-se por falsificar a história, reescrever textos… Não importa o quê, a fim de conseguir transformar sua usurpação em legitimidade. Como? …demonstrar os méritos do colonizador ou deméritos do colonizado, (estes) tão graves que não podem senão suscitar tal desgraça. E esses dois esforços são de fato inseparáveis. …imagens não são inconsequentes, difundidas acabam por repercutir, de certa maneira, na conduta e portanto na fisionomia real do colonizado. Que é o fascismo senão um regime de opressão em proveito de alguns? As relações humanas (na relação colonial) resultam de uma exploração tão intensa quanto possível, fundam-se na desigualdade e no desprezo… Existe, enfim, um antagonismo real, com fundamento político e econômico. “Aqui”, “o povo daqui”, “os costumes deste país”… São sempre inferiores, e muito, em virtude de uma ordem fatal e preestabelecida.

O colonizador não faz coincidir seu futuro. Só está aqui de passagem, não investe senão no que rende a curto prazo. A verdadeira razão… O colonizador jamais decidiu-se a transformar o colonizado à sua imagem. Não pode admitir tal adequação que destruiria o princípio de seus privilégios. A explicação… Essa impossibilidade …prende-se à natureza …Aquele que se sabe em má postura ideológica ou ética, gaba-se, em geral, de ser um homem de ação, que retira lições de sua experiência. Conjunto de condutas, de reflexos adquiridos, exercidos desde a primeira infância, valorizado pela educação, o racismo do colonizador está tão espontaneamente incorporado aos gestos, às palavras. Atitude racista: descobrir e por em evidência as diferenças; valorizar essas diferenças em proveito do colonizador e em detrimento do colonizado; levar essas diferenças ao absoluto, afirmando que são definitivas, e agindo a fim de que se tornem tais. O que poderia contribuir para algo em comum, o colonizador salienta, ao contrário, tudo aquilo que separa. O fato sociológico é batizado biológico, ou melhor, metafísico. Pertence à essência do colonizado (e assim) a relação torna-se uma categoria definitiva. “É o que é porque eles são o que são” e nem um nem outro jamais mudará.

O colonizado

A existência do colonizador reclama e impõe uma imagem do colonizado. Álibis, sem os quais a conduta do colonizador, sua existência, pareceria escandalosa. …a preguiça …Nada poderia legitimar melhor o privilégio do colonizador que seu trabalho; nada poderia justificar melhor o desvalimento do colonizado que sua ociosidade. O retrato mítico do colonizado conterá então uma inacreditável preguiça. O do colonizador: o gosto virtuoso da ação. Subalimentação; baixos salários; futuro bloqueado; significação irrisória de seu papel social …a independência da acusação de quaisquer condições sociológicas e históricas, institui o colonizado como ser preguiçoso. A preguiça é constitutiva da essência do colonizado. Verdadeiramente, o colonizado importa pouco para o colonizador. (que) Longe de querer apreender o colonizado na sua realidade, preocupa-se em submetê-lo a essa indispensável transformação…. O colonizado “não é isso”, “não é aquilo”. Jamais é considerado positivamente. “Eles são imprevisíveis”… “Com eles nunca se sabe!”…

Uma estranha e inquietante impulsividade parece comandar o colonizado. É preciso que o colonizado seja bem estranho, em verdade, que permaneça tão misterioso após tantos anos de convivência… despersonalização… afogamento no coletivo anônimo. “Ele são isso… Eles são todos iguais”. Se a empregada doméstica não vem certa manhã, o colonizador não dirá que ela está doente, ou que ela engana, ou que ela está tentada a não respeitar um contrato abusivo (sete dias em sete). Afirmará que “não se pode contar com eles”. … acontecimentos pessoais, particulares, da vida de sua empregada; essa vida na sua especificidade não o interessa, sua empregada não existe como indivíduo.

Esse delírio destruidor do colonizador… Em confronto constante com essa imagem de si mesmo, proposta e imposta, acaba o colonizado por reconhecê-la como um apelido detestado, porém convertido em sinal familiar. A acusação o perturba, o inquieta. “Não terá um pouco de razão?”, murmura o colonizado. “Não somos, de certo modo, um pouco culpados?” “Preguiçosos, já que temos tantos ociosos?” “Medrosos, já que nos deixamos oprimir?”

Desejado, divulgado pelo colonizador, esse retrato mítico e degradante acaba, em certa medida, por ser aceito e vivido pelo colonizado. Ganha assim certa realidade e contribui para o ‘retrato real’ do colonizado. A ideologia de uma classe dirigente, sabemos disso, faz-se adotar em grande parte pelas classes dirigidas. Verifica-se certa adesão do colonizado ao colonizador. Mas essa adesão é resultado, e não causa; nasce depois e não antes.

O colonizado não se sente nem responsável nem culpado, nem cético, está fora do jogo. Não é mais, de modo algum, sujeito da história… Acabou por perder o hábito de qualquer participação ativa na história e nem sequer mais a reclama? Como explicar que um punhado do colonizadores, frequentemente arrogantes, possa viver no meio de uma multidão de colonizados?

Enquanto que a indulgência é plena para os pequenos arsenais do colonizador, a descoberta de uma arma enferrujada acarreta uma punição imediata ao colonizado. “Não são capazes de se governarem sozinhos” diz o colonizador. Inteiramente afastado do poder, acaba (o colonizado), com efeito, dele perdendo o hábito e o gosto. Como poderia interessar-se por aquilo de que é tão decididamente excluído? Como poderiam tão longas férias suscitar competências? Pode o colonizador prevalecer-se deste Presente fraudado para barrar o Futuro?

Essa mutilação social e histórica é provavelmente a mais grave e mais carregada de consequências. Considerando-se excluído da cidadania, o colonizado perde igualmente a esperança de ver seu filho tornar-se um cidadão. Cede, renunciando ele mesmo a essa esperança, não alimenta mais esse projeto e não lhe dá lugar algum na sua pedagogia. Nada, pois, sugerirá ao jovem colonizado a segurança, o orgulho de sua cidadania. Dela não esperará vantagens, não estará preparado para assumir seus encargos. Nada, tampouco, é claro na sua educação escolar, onde as alusões à cidadania, à nação, serão sempre relativas à nação do colonizador. Esse vazio pedagógico, resultado da carência social, vem, pois, perpetuar essa mesma carência.

Sua fisionomia endurecida há séculos não é mais do que uma máscara, sob a qual ela sufoca e agoniza lentamente. Tal sociedade não pode reabsorver os conflitos de gerações, pois não se deixa transformar. A relação entre o colonizador e o colonizado é instável, seu equilíbrio está incessantemente ameaçado, sua personalidade oprimida, um dia se dispõe a recusar sua insuportável existência. Mudar de condição mudando de pele. Ambição de igualar-se a esse modelo prestigioso, de parecer-se com ele até nele desaparecer.

No momento em que o colonizador mais transige com sua sorte, o colonizado recusa-se a si mesmo com maior tenacidade. …um complexo de sentimentos que vão da vergonha ao ódio de si mesmo. Em nome daquilo que deseja vir a ser, empenha-se em empobrecer-se, em arrancar-se de si mesmo. Para libertar-se, aceita destruir-se.

A condição da relação entre o Colonizador e o colonizado não pode ser mudada senão pela supressão da relação colonial. É inútil pretender agir sobre um ou outro, sem agir sobre essa relação… Há um drama… A colonização falsifica as relações humanas, destrói ou esclerosa as instituições e corrompe o colonizador e o colonizado.

Por Homero Mattos Jr.

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