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SELO: A mortalidade materna é muito elevada nas mulheres analfabetas* – Por José Maria Campos

É um tema muito importante e que faz parte da meteria das minhas aulas. Quando comecei a dar a Disciplina de Saúde da Comunidade costumava dizer aos meus alunos que não precisavam de estudar. Bastava que ouvissem o que eu lhes dizia e compreendessem. Se não compreendessem deviam-me interromper e por as suas dúvidas. Nessa altura eu deixava que os alunos levassem para os testes e exames os apontamentos que tiravam nas aulas. Pois nem assim havia notas altas nesta disciplina e alguns até reprovavam. Agora já não é assim. Há no entanto problemas práticos que alguns têm que resolver. Fazem-no com alguma dificuldade, pois os conhecimentos de aritmética foram esquecidos e agora o que conta é a máquina de calcular. Infelizmente aplica-se aos meus alunos o aforismo dormiu, esqueceu!

Fiz esta introdução para fazer ver a quem vai ler o que vou escrever sobre este tema, que infelizmente não há garantia de que os novos médicos saiam da faculdade conhecendo a fundo este assunto, apesar de este ser dado também na Disciplina de Obstetrícia a alguns anos, técnicos do MISAU e da Universidade de Standford dos E.U.A, estudaram este assunto detalhadamente e concluíram que um dos factores, talvez o principal, que diminui a mortalidade materna da mulher na gravidez, parto e puerpério (pós parto) é o seu nível de escolaridade. A mortalidade materna é muito elevada nas mulheres analfabetas, mas vai diminuindo, para chegar a valores idênticos aos dos países mediamente desenvolvidos, quando atingem o décimo segundo ano de escolaridade. Ao somatório dos conhecimentos que vai adquirindo enquanto estuda juntam se aqueles que aprende nos contactos que vai tendo com o nível primário de atenção de Saúde, que são os Centros de Saúde.

Moçambique, infelizmente, é um dos países aonde a mortalidade materna é mais elevada a nível mundial, o que nos entristece e envergonha.

Por aquilo que acabei de dizer, o país, em termos de ensino difere muito de sul para norte. Se no sul numa escola há cerca de 50% de meninas, conforme vamos andando para o norte , essa percentagem diminui imenso chegando aos 20% ou menos. No norte o problema é ainda mais grave porque , além da grande percentagem que não frequentam a escola, é muito grande o número daquelas que cedo abandonam a escola por razões diversas, sendo a mais frequente , quando o fazem para casar com pressões dos pais. Isto sucede geralmente a partir dos 12 anos. A população do norte é na sua quase maioria muçulmana e os seus dirigentes religiosos apoiam esta situação.

Tive a oportunidade de falar com algumas mães que não deixam as filhas escola. Repare-se que estamos a falar de cerca de 80% das meninas em idade escolar. Deram imensas razões para este facto: de elas serem necessárias na lide doméstica, como, por exemplo, ir buscar água, cozinhar e tomar conta dos irmãos mais novos , enquanto a mãe vai para a machamba; outra razão invocada pelas mães é o receio de que as filhas possam ser violadas pelos professores ou colegas mais velhos; outra é o costume enraizado no norte que a menina deve casar cedo, sendo esta razão apoiada pelos religiosos.

Perguntando qual seria a solução para que as suas filhas fossem todas á escola e prosseguissem os seus estudos, foi-nos posta a hipótese de haverem escolas só para meninas onde leccionariam professores do sexo feminino, muçulmanas. Não chegaram a dizer , mas senti que pensaram, que além do programa do Ministério da Educação e Desenvolvimento Humano, fosse possível ensinar também o Alcorão em árabe nessas escolas. Esta ideia das mães, sobretudo a parte que senti que pensaram e não disseram, seria capaz de w a percentagem de meninas a frequentar as escolas, poderia aumentar para perto dos 100%, se conseguíssemos que os líderes religiosos apoiassem esta ideia. É indispensável para isto acontecer que haja vontade política dos dirigentes, não apenas da Educação, do topo à base. Não me parece que seja bom que os partidos políticos, no norte do país, se envolvam neste processo. A adesão dos pais e das meninas, a este programa , não deve ser imposta ditatorialmente, como é hábito acontecer no nosso país, sobretudo da parte da FRELIMO. Deve ser uma adesão voluntária e a que os pais e as meninas devem ver uma vantagem para elas. Estas escolas continuariam a pertencer e ser geridas pelo Serviço Nacional de Educação.

As províncias do centro do país , estão numa situação intermédia , quanto a frequência de meninas nas escolas: Melhor que no norte e pior que no sul.

Vale a pena comparar aqui, com o que acontece com os Institutos de Ciências de Saúde. No Norte a frequência de alunos é quase toda masculina e no Sul há uma maioria feminina. Resulta daqui que, para dotar as consultas Pré-natais e Maternidades do Norte com enfermeiras de Saúde Materno – Infantil temos que recrutá-las entre as que saem dos Institutos do Sul. O que trás problemas de língua local e religiosos.

Assim, no centro já poderíamos envolver algumas ONG’S e partidos políticos , para nos ajudar a convencer os pais a deixar as suas filhas irem à escola e prossigam os estudos, acentuando a vantagem para elas desta atitude. Aqui não penso que seja de aplicar do programa das escolas para meninas. Os Ministérios da Educação e da Saúde devem analisar localmente este problema é tirar as conclusões que acharem mais adequadas para estas províncias. Talvez seja necessário contactos porta a porta para falar com os pais, o que é uma tarefa gigantesca.

Falando agora da atenção á grávida que ocorre nas Consultas Pré-Natais dos centros de saúde, é muito importante que se faça a prevenção medicamentosa da malária á volta do quarto mês de gravidez. Por outro lado, deve-se tratar as anemias , que podem ocorrer nas grávidas, devido à malária ou a parasitoses intestinais e vesicais que devem ser tratadas.

Quando uma grávida tem crises de malária, os globos vermelhos destruídos, vão provocar micro-tromboses nos capilares da placenta, e, por isso, a irrigação sanguínea do feto diminui, o que leva a que haja baixo peso à nascença.

As infeções genitais devem ser cuidadosamente tratadas e a mulher não deve entrar na maternidade com uma infecção genital, o que é frequente acontecer por desleixo e incúria das enfermeiras de SMI da C.P.N.

Na atenção ao parto deve haver o cuidado de examinar as placentas para verificar se estão completas, caso contrário, deve fazer-se uma revisão manual do endométrio para retirar os pedaços de placenta que não saíram. Se, apesar disso, a hemorragia continuar abundante, é necessário fazer uma curetagem, com muito cuidado, para não provocar roturas uterinas, em particular nas grandes multíparas, que deveriam ter sido referidas para nível superior e não foram, talvez por dificuldade de transporte.

Além disso no período expulsivo é de toda a vantagem, fazer uma episiotomia para evitar rasgaduras do períneo que levam a fístulas vésico-vaginais ou recto – vaginais , que são muito difíceis de tratar e causam grande sofrimento á mulher.

No Centro de Saúde deve-se saber qual é a população da sua área de Saúde e, com este dado demográfico deve-se calcular o número de gestações que vão ocorrer num ano, nessa população, utilizando a taxa de fertilidade que, no nosso país , é de cerca de 50/1000. A partir deste dado o Centro de Saúde deve planificar o número de mulheres que irão frequentar as primeiras consultas da Consulta Pré-Natal , bem como, o número previsível de consultas por grávida. O indicador quantitativo desta consulta é a taxa de cobertura , ou seja a taxa de grávidas que vão a primeira consulta, que deve ser igual ao planificado. O indicador qualitativo é a percentagem de ARO detectado por esta consulta, sendo de aceitar, percentagens entre 25 e 30 por cento. Concluindo, o objectivo específico da C.P.N. é detectar o ARO, segui-lo, tratá-lo e se necessário referi-lo para nível superior.

Nas maternidades do país a média da taxa de mortalidade materna intra-hospitalar, é de cerca de 150 por 100 000 nados vivos. Se a taxa for superior , está indicado fazer uma inspecção á Maternidade, verificando o preenchimento do partograma e quais foram as decisões que foram tomadas em caso de ocorrerem anomalias.

Para conhecer o número de partos que deve ocorrer , num ano, na área de saúde , deve utilizar-se indicador taxa de natalidade, que no nosso país , embora variável de região para região, é, em média, de 45 por 1000. A maternidade deve planificar o número de partos que vai fazer no ano seguinte. O indicador quantitativo que permite avaliar a maternidade é a taxa de cobertura de partos. E os indicadores qualitativos que nos dão a avaliação do trabalho do pessoal da maternidade, são os seguintes: taxa de nados-mortos com foco positivo á entrada, que não pode exceder 0,3%; taxa de mortalidade materna que deve ser inferior a 150 por 100 000 nados vivos. Vemos ainda verificar se houve rasgaduras do períneo e se o número de episiotomia é suficiente elevado. Se o número de rasgaduras do períneo for elevado devemos orientar as parteiras para fazerem episiotomia a todas as grávidas. Aliás, é uma pratica que é obrigatória nas maternidades de alguns países.

É curioso notar que a percentagem de nados mortos de uma maternidade é geralmente de 3% , mas o número de nados vivos é igual ao número de partos, já que há 3 % de gémeos. Um fenómeno compensa o outro. As principais causas de mortalidade materna na maternidade são as hemorragias pós-parto e as infeções puerperais. Nenhuma grávida deve ter alta de uma maternidade se houver hemorragia ou infecção puerperal. Este é o critério de alta que deve ser utilizado. A não utilização deste critério é a razão do elevado número de puérperas que vão morrer para casa. O que leva a que a taxa total de mortalidade materna intra e extra hospitalar ronde os 400 por 100 000 nados vivos. O que é, praticamente , um recorde mundial e que, urge diminuir. Uma vergonha!

Várias vezes propus que se introduzissem, no programa de SMI, na componente de atenção ao parto, critérios de alta das puérperas nas maternidades.

No entanto, até agora, as puérperas tem alta, geralmente sem qualquer exame na manhã do dia a seguir ao parto.

Agora, se queremos resolver o problema da mortalidade materna, o critério atrás referido , deve ser incluído imediatamente no programa de SMI e, os dirigentes do MISAU, devem ser responsáveis por isso, incluindo a ministra e o vice-ministro. Os directores provinciais , médicos chefes provinciais, directores dos centros de saúde e respectivos Médicos chefes, devem igualmente responder por esta componente do programa.

Em meu entender a chefia dos programas de SMI (e de outros também) deve ser descentralizada para as Direções Provinciais havendo um sub-sistema de informação deste e de outros programas com dados provenientes dos Centros de Saúde , que deverão ser analisados nas direcções provinciais, em particular pelos médicos-chefes provinciais e que deverão ser enviados aos Órgãos Centrais do MISAU , com a periodicidade de um mês.

Sempre que aconteça que uma puérpera tenha alta de uma maternidade sem obedecer aos critérios de alta e vá morrer a casa, isto deve ser objeto de um inquérito rápido e sumário e aberto um processo disciplinar ás enfermeiras de SMI responsáveis pela alta, que, invariavelmente culminaria com a sua expulsão. O processo uma vez finalizado deve ser remetido ao Procurador Provincial da República, por se tratar de negligência grave, criminosa , que culminou com uma morte , que podia, evitada.

Lamento que se tenha que proceder assim, mas se não o fizermos, a mortalidade materna continuará a atingir estas taxas elevadíssimas. Quero lembrar que a responsabilidade de isto tudo é, em última análise, da ministra e vice-ministro da Saúde, que sem qualquer hesitação devem pôr isto a funcionar.

Bem basta, o que basta.

P.S.: no meu segundo ano do Liceu Salazar tinha um professor de inglês que dava as aulas todas em inglês. Todavia, quando queria chamar a atenção aos alunos para algo importante, parava e dizia o que eu vou dizer agora , sobre algumas coisas que referi no que acabo de escrever:

NOTA A IGNORANTES: Um ministério tem um Aparelho de Estado, que se divide em Órgãos Centrais, direcções provinciais e direcções distritais. É nestes órgãos que o ministério toma as suas decisões. O resto é Função Pública onde se cumprem as decisões. No caso do MISAU temos o Serviço Nacional de Saúde com os quatro níveis de atenção de Saúde, e outras instituições.

*Título da responsabilidade do @Verdade

Por José Maria Campos

Médico especialista em Saúde Pública

Docente da Faculdade de Medicina da U.E.M.

Membro do Partido FRELIMO

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