Nas reclusões moçambicanas a existência de doentes mentais que dividem as mesmas celas com indivíduos aparentemente sem nenhuma patologia psíquica só passa despercebida para quem vive fora da muralha que efectiva a privação da liberdade. Em quase todas elas há gente misturada nestas condições, porque os órgãos de administração da Justiça não dispõem de especialistas para o diagnóstico e a triagem, o que constitui uma ameaça à saúde dos detidos. Apela-se, veementemente, para que as pessoas sem o gozo pleno das suas faculdades mentais sejam afastadas e internados em centros especializados, os quais também não existem, pois a saúde mental no país ainda é um assunto que “passa por alto”.
A 16 de Setembro último, Paulo Sousa, director da Faculdade de Ciências Criminais do Instituto Superior de Ciências e Tecnologia Alberto Chipande (ISCTAC), participou numa conferência realizada pelo Ministério da Justiça, Assuntos Constitucionais e Religiosos, através do Instituto do Patrocínio e Assistência Jurídica (IPAJ), e falou do “Tratamento Jurídico da Saúde Mental em Moçambique”, tendo afirmado que os critérios de prevenção, identificação e tratamento de qualquer doença mental nas cadeias, e as leis que regulam tais procedimentos são negligenciados.
“Pode-se de dizer, de viva voz, que ainda estamos aquém de tornar as normas jurídicas eficazes (…). O tratamento jurídico na esfera de saúde mental, no ordenamento jurídico moçambicano, é patologicamente grave e necessita de uma urgente intervenção de todos nós (…)”.
As críticas de Paulo Sousa a um sector que desde sempre se debateu com um rosário de obstáculos que tornaram o acesso à Justiça depreciativo e um luxo para milhares de cidadãos, dizem, também, respeito ao facto de a análise da saúde mental de um indivíduo em conflito com a lei ser relegada para um outro plano em virtude de se colocar “todas as atenções sobre a vítima. Não se faz uma avaliação mental do agressor (…)” para perceber as razões da ocorrência do delito e, em caso de se provar que não goza plenamente das suas faculdades psíquicas, assegurar que tenha um encaminhamento adequado e não seja misturado com os reclusos sãos, em particular os que, por conta da sua prisão preventiva expirada, sem no entanto poderem ser restituídos à liberdade, convivem forçosamente com os dementes.
Na altura de apontar os “culpados”, o director da Faculdade de Ciências Criminais do ISCTAC não hesitou em dizer que a Polícia, como primeira entidade a lidar com um “acusado”, não dispõe de agentes da Saúde especializados para averiguar as situações a que nos referimos. O Ministério Público enferma do mesmo problema e, por tabela, os tribunais condenam, por vezes, alguém pela prática de uma determinada infracção sem haver assistência, mesmo quando em virtude da sua condição psicológica (doentia) nos termos da lei não devia estar sujeito a sanções criminais, mas, sim, a uma terapia em unidades hospitalares apropriadas.
Nas prisões, onde ocorre o cumprimento efectivo da pena definida pelos tribunais, existem pessoas, com a consciência anormal, a cumprir penas por causa “da falha cometida pelo Ministério Público” ou pelo juiz. “Pairam muitas questões em torno da responsabilidade dos sistemas penitenciários em relação a estes indivíduos e ao tratamento adequado a ser-lhes dado”, disse Paulo Sousa. Segundo o orador, as pessoas acometidas por distúrbios mentais são inimputáveis à luz dos artigos 46 e 47 do Código Penal, conjugado com outros dispositivos. Elas precisam de um tratamento específico e medidas de segurança, e não necessariamente de cadeias.
No âmbito da Lei 7/2014 de 31 de Dezembro, nomeadamente no artigo 144, número 2, alínea a), a um indivíduo condenado por quaisquer crimes assiste-lhe o direito de “interrupção contínua da pena (…)” para atendimento em centros especializados. Esta norma responde, em parte, “aos problemas das reclusões, ligados à existência de cidadãos cuja sanidade mental é patológica”, e abrange aqueles que durante o cumprimento efectivo do castigo adquirem igualmente perturbações mentais de diversa ordem.
Todavia, o dispositivo em alusão não está a ser implementado de forma satisfatória à conta dos erros dos intervenientes na administração da justiça. Para Sousa, não basta só ter as leis, “o Estado deve encontrar mecanismos concretos para a sua efectivação absoluta (…)”.
Falhas que inibem a vontade de viver
Um estudo levado a cabo pela Oficina de Psicologia do ISCTAC, em coordenação com a Clínica Jurídica da mesma instituição, constatou que nas cadeias existem indivíduos que passaram a ter distúrbios mentais por terem sido condenados quando eram inocentes, e tais situações deveram-se a “erros de cálculo, erros da investigação criminal e torturas nas esquadras (…)”. Falhas como estas “podem deixar a pessoa deprimida, insatisfeita, inconformada”, e uma das consequências é “a perda de vontade de se alimentar e viver”.
Longa espera sem motivação e Mussanhane tenta “esquivar-se”…
O não cumprimento dos prazos de prisão preventiva é também outro problema, não raras vezes, marginalizado pela administração da Justiça, o que pode levar a anomalias psíquicas por causa da ansiedade de ter uma vida normal fora da cadeia, ao stress e, na pior das hipóteses, à quebra súbita de humor, à irritabilidade, ao temor, entre diversos danos. “Ainda assim, estes indivíduos vivem num estado de espera e sem motivação”.
Sobre este assunto, Eduardo Mussanhane, director-geral do Serviço Nacional Penitenciário (SERNAP), evitou reconhecer a falta de psicólogos, agentes psiquiátricos e agentes da Saúde especializados para cada tipo de patologia mental e o seu grau de evolução nas cadeias. Ele disse que estas dispõem desses profissionais, porém, em número diminuto. Entretanto, Sousa rebateu declarando que os técnicos a que o dirigente se refere são generalistas, que se pretende que sejam técnicos à altura de diagnosticar e tratar as anomalias psíquicas ou transtornos mentais mais frequentes (…), tais como o suicídio, as alucinações, o masoquismo, a pedofilia, gerontofilia, entre outros.
No que tange ao não cumprimento dos prazos de prisão preventiva, Mussanhane disse que a situação também lhe preocupa porque esta cria sérias dificuldades na gestão da população penitenciária, mas nada pode fazer porque não tem a prerrogativa de libertar nenhum recluso. Quem deve fazê-lo “está aqui”, afirmou ele apontado para a Procuradora-Geral Adjunta, Lúcia Maximiano, que não se pronunciou em concreto sobre o assunto.