Que saudades daqueles últimos dias de Outubro de 1994, quando 88% dos eleitores moçambicanos foram às urnas para escolher os seus governantes nas primeiras eleições multipartidárias da história do nosso país. Por aqueles dias, quando o receio do retorno à guerra ainda nos assombrava, a melhor resposta dada àqueles que previam o regresso às armas foi aquela votação maciça.
Eu já andava nas lides jornalísticas e lembro-me de Aldo Ajello, o Representante Especial das Nações Unidas para Moçambique, confi denciar-me que nunca tinha visto nada assim. Tanto entusiasmo, tanto crer, tanto querer, tanta vontade, não podia ser, por dá cá aquela palha, desbaratado pelos responsáveis políticos. “Este povo merece bons políticos”, dizia-me.
Efectivamente, a forma como em 1994 se viveu a campanha e os dias de votação, não mais se repetiram nos pleitos seguintes. Em muitas assembleias de voto lembro-me de ver bichas que concorriam com as do tempo das Lojas do Povo, quando uma simples ida ao pão ou à carne representava passar o dia fora de casa, a “bichar”. Tal como nos “anos de chumbo”, também naqueles dias de Outubro de 94 alimentámo-nos, não de pão, mas da esperança que o voto iria mudar as nossas vidas. Pela primeira vez na nossa história estávamos a participar activamente na vida política do país. E nós, eleitores inocentes, naifs, com a nossa esmagadora participação, fi zemos História, a Nossa História, independente dos partidos e dos políticos.
Nunca poderei esquecer o deleite daquela mulher que a um minuto do fecho das urnas entrou esbaforida numa escola primária do Xipamanine, colocou uma cruz em cada boletim – votava-se simultaneamente para as presidenciais e legislativas –, submergiu o indicador direito no boião de tinta azul indelével como prova de voto e saiu a cantar e a dançar num júbilo indescritível. Nunca poderei esquecer o orgulho do dedo tingido de azul e dos que me diziam que só iriam lavá-lo quando o tempo se encarregasse de lhe devolver a cor original. Por aqueles dias, verter água ou pôr sabão no indicador direito era sinónimo de heresia. Nunca poderei esquecer também a convicção daquele homem distinto que votou com uma camisa toda esfarrapada e quando eu lhe perguntei a razão disse-me que fez questão de ir às urnas com a roupa com que tinha saído da cadeia uns anos antes. Nunca poderei esquecer também a proliferação de candidatos à presidência. Penso, se a memória não me atraiçoa, que eram 14! E, embora soubéssemos que só dois tinham hipóteses de chegar à Ponta Vermelha, todos faziam uma campanha alegre, descomplexada, sem golpes baixos, bem diferente dos dias de hoje. Havia até um candidato que se auto-intitulava de “didáctico”, mais interessado em fazer passar a mensagem da importância do acto eleitoral propriamente dito do que a sua própria. Nunca poderei esquecer também o entusiasmo com que o grupo teatral Mutumbela Gogo percorreu o país com uma peça que apelava à educação cívica e à importância do voto e de como o povo, na sua maioria analfabeto, aderia e se empolgava com as suas representações.
Depois disso, os números, surpreendentemente, ou talvez não, inverteram-se. Nas municipais de 1998, a abstenção chegou aos 85%! Nas de 2003, que contaram pela primeira vez com a participação do maior partido da oposição, situou-se nos 76%. Nas presidências de 1999 cifrou-se nos 32,3%, mais do dobro de 1994. Nas de 2003 disparou para 60%.
Estes valores tão elevados deviam ser objecto de estudo por parte, sobretudo, dos responsáveis políticos. O que fez com que, em dez anos, a participação dos eleitores passasse de 88% para 40%, no caso das últimas presidenciais? Responda quem souber. Por mim continuo a apelar ao voto, tendo consciência que, para além de ser um direito e um dever cívico, é a forma mais activa – ainda não se inventou outra mais preponderante – do cidadão anónimo intervir nos destinos do país.