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Saldarás todas as tuas dívidas em 2009!

PuraMente

O endividamento excessivo, causa da actual crise, só pode ser reabsorvido de quatro maneiras: salários em atraso, falências, inflação ou… anulação pura e simples das dívidas.

No Livro do Levítico do Antigo Testamento, Deus ordena aos filhos de Israel que observem um jubileu de 50 em 50 anos. Hoje, existe a tendência para associar esta palavra às celebrações de aniversários reais como o jubileu de ouro da rainha Isabel, em 2002. A concepção bíblica de jubileu, contudo, era mais precisa: tratava-se da anulação generalizada de todas as dívidas.

Este desígnio é explicitado no Livro do Deuteronómio: “Todo o credor remitirá o que emprestou ao seu próximo. Não o exigirá do seu próximo ou do seu irmão, pois a remissão do Senhor é apregoada.”

Estas ordens podem parecer utópicas ao leitor moderno. Como poderia funcionar uma sociedade complexa se todas as dívidas fossem perdoadas duas vezes por século – ou, pior ainda, de sete em sete anos, como parece sugerir o Deuteronómio? Sabe-se, no entanto, que esses cancelamentos gerais de dívida se verificaram, de facto, no mundo antigo. Em 1788 a.C. por exemplo, cerca de 500 anos antes da época de Moisés, o rei Rim-Sin promulgou um édito real que declarava nulos e sem efeito todos os empréstimos, eliminando por completo alguns dos primeiros prestamistas da história.

A ideia de um cancelamento generalizado da dívida não é totalmente estranha nos tempos modernos. O defunto Gerald Feldman, a maior autoridade mundial em matéria de hiperinflação na Alemanha, em 1923, estabeleceu um paralelo entre o antigo “yovel” hebraico e a anulação de todos os títulos de dívida denominados em marcos, devido ao colapso da moeda alemã (embora, como se apressou a sublinhar, aqueles cujas poupanças foram anuladas se tenham sentido tudo menos jubilosos).

Na esperança de evitar o colapso do marco, o economista John Maynard Keynes defendeu repetidamente o cancelamento geral das dívidas e compensações de guerra resultantes da I Guerra Mundial. Ainda que nenhum jubileu intergovernamental deste tipo tenha sido alguma vez proclamado, o que aconteceu depois de 1931 foi, efectivamente, um cancelamento da dívida, a começar pela moratória de um ano que o Presidente Herbert Hoover concedeu para as dívidas e compensações de guerra.

Ao chegar ao fim o ano de 2008, muitas pessoas dos dois lados do Atlântico anseiam por uma solução simples, como esta, para o problema do endividamento excessivo. Os paralelos com o período entre as duas Guerras não são desadequados. É inevitável que assistamos, em 2009, a sérios distúrbios políticos e geopolíticos, à medida que os efeitos da recessão comecem a fazer-se sentir sobre os governos fracos (a Tailândia e a Grécia já estão a ser afectadas) e a intensificar as rivalidades entre Estados (Índia e Paquistão). Segundo o secretário do Tesouro dos Estados Unidos da América, Hank Paulson, “estamos perante uma situação histórica que acontece uma vez ou duas em cada 100 anos”. O que está em jogo é importante. Terá chegado o momento para um desses jubileus bíblicos que acontecem de 50 em 50 anos?

O endividamento excessivo está na base desta crise. É a razão por que não estamos perante uma recessão vulgar, curável através de um simples ajustamento em baixa das taxas de juro. É a razão por que ainda temos a recear, se não uma segunda Grande Depressão, pelo menos aquela que deverá ser a maior recessão desde os anos 1930. Vivemos o fim doloroso de uma época de alavancagem, durante a qual a dívida pública e privada total nos Estados Unidos aumentou de cerca de 155 por cento do produto interno bruto, no começo dos anos 1980, para qualquer coisa como 342 por cento, em meados de 2008.

Como a dívida média das famílias aumentou de 75 por cento do rendimento anual disponível, em 1990, para quase 130 por cento, em vésperas da crise, uma grande parte das famílias americanas está a ser esmagada pelo peso dos seus empréstimos acumulados. As famílias britânicas estão ainda pior. Em retrospectiva, podemos ver que, desde 2001, boa parte do crescimento dos Estados Unidos foi financiado pela renegociação de hipotecas por valores mais elevados. Sem esse meio para financiar o consumo, a economia mal teria crescido um por cento por ano durante a Administração de George W. Bush. Em perspectiva, vemos que será muito difícil estabilizar os preços do imobiliário e dos títulos neles baseados. Já no final de Setembro, um em cada dez americanos possuidores de casa com hipoteca tinha, pelo menos, uma prestação em atraso ou em execução hipotecária. Uma em cada cinco hipotecas excede o valor da casa que serviu para comprar.

As dívidas do sector financeiro aumentaram ainda mais depressa, à medida que os bancos procuravam aumentar os seus rendimentos sobre títulos através do “efeito de alavanca”. Segundo uma estimativa recente, os rácios de alavancagem totais (activos e exposição ao risco contabilizados e não contabilizados a dividir por activos corpóreos) dos dois maiores bancos americanos eram de 88/1 para o Citibank e de 134/1 para o Bank of America. O rebentamento da bolha imobiliária levou a que estes rácios, já demasiado elevados antes da crise, explodissem quando as consequências dos compromissos extrapatrimoniais e das linhas de crédito pré-aprovadas se fizessem sentir. Os bancos só conseguiram continuar a operar contraindo empréstimos junto da Reserva Federal, a uma escala inédita.

As estimativas de perdas totais em activos de risco situam -se entre os 2,8 e os seis biliões de dólares (1,96 a4,56 biliões de euros) , sendo de esperar uma reacção em cadeia, que não poupará nenhum sector da economia mundial. A economia dos Estados Unidos regista uma contracção a uma taxa anual de cinco por cento. O imobiliário comercial acompanha a queda livre do mercado habitacional. O índice 500 da Standard & Poor desceu 43 por cento desde o seu pico, em Outubro de 2007. O mercado de “swaps” de risco de incumprimento aponta para uma vaga de incumprimentos nas obrigações emitidas por empresas. A indústria automóvel já está (contra a vontade do Congresso e a intenção inicial do Tesouro) a balões de oxigénio.

Será plausível que a cura para o excesso de alavancagem no sector privado seja um excesso de alavancagem no sector público? Haverá uma forma mais simples de sair da crise? Quando falam de “desalavancagem”, os economistas referem – se, regra geral, a um processo bastante lento, através do qual empresas e famllias passam a poupar mais para liquidar as dívidas.

A alternativa será uma redução mais radical da dívida. Historicamente, essas reduções foram feitas de uma de quatro maneiras: incumprimento total, reestruturação (por exemplo, falência), inflação ou conversão. Cada vez mais famílias americanas optam pela primeira e cada vez mais empresas são arrastadas para a falência. Contudo, execuções hipotecárias e falências em massa não representam uma perspectiva brilhante. Pelo contrário, é difícil preocuparmo-nos com a inflação a curto prazo, em especial porque a expansão da base monetária realizada pela Fed não induz uma expansão proporcional da massa monetária global. Os bancos preferem reduzir e não expandir os seus balanços.

Resta a conversão, através da qual todos os créditos hipotecários poderiam ser convertidos, no todo ou em parte, em empréstimos de longo prazo, com juros baixos e fixos, como sugeriu recentemente Martin Feldstein, de Harvard (neste esquema, o Governo ofereceria a todos os proprietários de habitações hipotecadas a possibilidade de substituir 20 por cento da hipoteca por um empréstimo governamental com uma taxa de juro baixa, até um máximo de 80 mil dólares . A taxa de juro anual poderia não ultrapassar os dois por cento e o empréstimo seria amortizado em 30 anos).

No mínimo, isto salvaria muitos proprietários de habitação própria do pesadelo da situação líquida negativa. No que se refere às dívidas dos bancos que foram parcial ou totalmente recapitalizados pelo Estado, poderia ser encarada uma operação semelhante. Isto não aumentaria a dívida federal em termos líquidos. Reduziria o peso dos juros das famílias e talvez mesmo o peso do seu endividamento total.

Estas medidas radicais representariam, naturalmente, um golpe para os credores, em especial para os detentores de títulos garantidos por créditos hipotecários e obrigações de bancos. No entanto, elas seriam preferíveis às alternativas. E seriam, decerto, uma solução menos extrema do que o can-celamento geral das dívidas preconizado no Antigo Testamento.

Do ponto de vista financeiro, 2008 foi um “annus horribilis”. A resposta poderá ser fazer de 2009 o verdadeiro ano de jubileu.

 

 

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