A vida foi-lhe sempre madrasta. Aos 15 anos de idade começou a viver maritalmente. Já esteve à beira da morte, sentiu na pele a discriminação, mas com fé e determinação vence as adversidades e rema contra a maré, cuidando dos fi lhos: Edilson, de 11 anos de idade, infectado pelo HIV e Titos (três anos), livre do vírus. Se Raquel Jorge fosse uma pessoa má seria uma metáfora do vaso ruim. Cai, mas não quebra.
“Não vou porque não é verdade! Deve ser um engano do Hospital e se continuares a falar do mesmo assunto, expulso-te de casa”. Foi desta maneira, sem papas na língua e sem rodeios que, em 2000, o marido de Raquel, com quem vivia há mais de dez anos reagiu, quando a mulher contou que tinha contraído o HIV e o hospital queria a sua presença para juntos fazerem o tratamento.
Raquel Jorge ouviu a resposta do marido e de forma instintiva levou as mãos à barriga segurando o filho e fez-se à vida. “Naquele dia quase que o meu mundo desabou. Apesar da resposta negativa não me surpreender porque vivíamos numa relação problemática, nunca imaginei que me abandonaria numa situação tão séria”, conta.
Algum tempo depois, pressionado pela insistência sobre o tratamento, o marido expulsou-a de casa, alegando não querer doentes. Na verdade, muito antes de Raquel abordá-lo, ele já sabia que era seropositivo e fazia tratamentos tradicionais escondido da parceira.
Ao deus-dará e sem rumo, encorajada pelo filho dentro de si, Raquel lutou contra tudo e todos. Os familiares, sobretudo os irmãos, também lhe abandonaram e foi pedir auxílio a um primo que acabava de regressar doente da vizinha África do Sul.
Comovido, o familiar acolheu-a em sua casa no bairro Malhazine, na cidade de Maputo, onde, enquanto cuidava do filho e os sobrinhos, experimentou os dias mais infernais da sua vida. No final da gravidez nasceu um rapaz aparentemente saudável, a quem deu o nome de Edilson, mas com o tempo começou a ter recaídas.
Edilson nasceu infectado pelo HIV porque no país não havia condições para evitar a transmissão vertical da mãe para o bebé. “Além disso, eu não tinha informação sobre os cuidados a tomar para evitar contaminar o meu filho. Quando fui ao hospital, já era tarde demais”, conta.
Segundo o Ministério da Saúde, o Programa Nacional de Prevenção da Transmissão Vertical (PTV) foi lançado em 2002, portanto dois anos depois de Edilson nascer. Só com o andar do tempo, para assegurar que o programa abrangesse o maior número possível de mulheres grávidas, foi integrado nas unidades sanitárias para mulheres e crianças.
Os anos mais tristes
Desde 2000 até hoje em casa do primo, que veio a falecer, as dificuldades foram constantes. Sem emprego e apoio, sofreu algumas recaídas que lhe desfi guraram o corpo. Nas ruas do bairro era apedrejada e os vizinhos escreviam sobre o seu estado serológico nos muros. Quando não conseguia algum biscate, alimentava-se de mangas verdes.
Um dia em 2006, quando voltava de mais uma jornada laboral, encontrou o fi lho deitado no pátio. Acabava de comer fezes humanas que alguém, até hoje desconhecido, deitou no seu quintal. “Carreguei o miúdo para a pediatria do Hospital Central de Maputo, onde ficou internado por uns dias e a partir dali começou a passar mal”.
Raquel precisou de cinco minutos para contar a sua história. Os seus relatos exigem longas pausas, momentos em que interrompe de repente uma frase, olha distante, pensativa e, alguns minutos depois, retoma a conversa onde terminou. Os olhos tornam-se sempre húmidos e faz uso frequente da mão para limpar as lágrimas que caem do seu rosto pálido. A pergunta sobre se já pensou que iria morrer torna-lhe novamente pensativa e distante. Após um meio sorriso com os lábios fechados, responde: “O meu filho era a única coisa que me encorajava a lutar, mesmo quando a esperança me dizia que não vale a pena”.
Até que veio a esperança de vida
Com a morte do primo, as coisas complicaram-se. Os sobrinhos não a queriam naquela casa. Pressionada, a sua situação de saúde piorou. Um dia, quando se dirigia a uma unidade sanitária de Bagamoyo, conheceu uma mulher que se apercebeu do seu estado e a aconselhou a procurar a Hishikanwe, uma associação que lida com portadores de HIV. Lá Raquel encontrou afecto, carinho e compreensão.
Nestes dias, graças à parceria entre aquela agremiação e a Bliss Chemical, proprietária da marca de detergentes Maq, numa primeira fase, Raquel ganhou uma casa orçada em 60 mil meticais no distrito de Marracuene. O projecto segundo Aft ab Parek, dirigente da empresa, está enquadrado na responsabilidade social, que consiste em apoiar as pessoas desfavorecidas, nos dois anos em que o grupo está no país.
“Estou feliz por ter o meu próprio espaço. Ali tenho um lugar para abrir uma horta e um pequeno negócio. Sinto-me como se estivesse a nascer de novo”, conta Raquel emocionada.
Enquanto falámos, o filho, hoje com 11 anos, interrompe a conversa por várias vezes: “mamã posso comer aquele arroz”? Edilson é um miúdo como os outros. Irrequieto, brincalhão, divertido, traquina. Frequenta a quarta classe e a única diferença é que ele sabe que tem HIV, mas não se dá por vencido, mesmo quando os colegas da escola zombam de si. Como a progenitora há dois anos, Edilson está a fazer o tratamento anti-retroviral há três e não se queixa de nada.
Para algumas pessoas que acompanham o dia-a-dia da família, ele é o escudo protector da mãe, que tem os braços e as pernas meio paralisadas, devido aos efeitos colaterais dos medicamentos. O miúdo lava, cozinha, faz diversos trabalhos domésticos e ainda tem tempo para jogar a bola, seu principal passatempo. “É um miúdo especial que, além de forças para continuar a viver, transmite à mãe, a esperança de que tudo há-de acabar bem”, diz Judite de Jesus, da Associação Hishikwane.
Mas, a alegria de Raquel não provém apenas de Edilson. Existe Titos, o mais novo de três anos, que nasceu livre do HIV. Com a diferença de oito anos, Titos e Edilson são filhos do mesmo pai. Segundo Raquel, mesmo depois de a ter expulso, o marido que agora vive na Macia, província de Gaza, com outra mulher, sempre a perseguiu ao ponto de a engravidar e nascer outro filho, que depois não assumiu e desapareceu de vez.
Titos é como o irmão: divertido. Corre de um lado para o outro, sai de casa e volta constantemente. Mexe a nossa câmara fotográfi ca. A mãe ri-se e ralha quando os petizes se excedem. Tem esperança na Medicina e acredita que o filho Edilson viverá muitos e longos anos. Oxalá que isso aconteça.