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Quero o meu pai!

Quero o meu pai!

Contrariamente às crianças que nasceram em famílias estáveis, esta é a triste história do filho de Deus: longe do pai e da mãe – e apenas com calças e camisola rotas como bens próprios – o pequeno Elso Jorge Comé, de 12 anos, sobrevive de esmola que arrecada na esquina entre a Avenida 25 de Setembro e a Rua da Marinha e pernoita no circuito “Repinga”, em Maputo. “Quero ir a Cumbana, Inhambane, para a minha mãe me mostrar onde está o meu pai para ele me levar à escola”, é quanto pede sob lágrimas que só não escorrem na sua cara infantil e inocente, porque tenta ser homem da rua…

Quarta-feira, 10 horas, estamos no entroncamento entre a “25 de Setembro” e a Rua “praça da Marinha”. O pequeno Elso está sentado no chão que se converteu no sofá da sua “casa” chamada Circuito de Manutenção “António Repinga” cujo tecto é o céu e as paredes são o ar. Ao pequeno aceno, o menino, que está nas fotos ao lado, correu ao nosso encontro. Mas, ao estender a sua mão já áspera, em vez de esmola, recebeu um convite para nos contar a sua triste biografia que o levou a morar naquele miserável local.
Quando Elso nasceu na localidade de Cumbana, Inhambane, em 1997, estava longe de cogitar que o senhor seu pai, Jorge Comé, cedo se zangaria com a sua mãe Emília Zavala. Comé rumou para Maputo. Cinco anos depois, regressaria para Cumbana não para se reconciliar com Emília, mulher a quem jurara amor eterno, mas sim para arrancar o miúdo dos seus braços.
Aos cinco anos, o pequeno Elso desembarcou, nos braços do pai, na metrópole moçambicana, Maputo. Era o começo do calvário: a madrasta – cujo nome o menino diz que não se quer lembrar, investiu o seu tempo e força em maltratá-lo: ” (…) batia-me todos os dias” diz o pequeno Elso. Para isso, como diz o infante, não era preciso cometer crime algum. E sim: “ às vezes só por comer algo ou brincar com os outros meninos ela batia-me (…) ”.
De tanto levar tareia insuportável para pessoas da sua idade e condição, Elso tentou notificar o pai. Foi em vão pois Comé, ao transferir o filho para casa de uma amante, errou na receita para curar uma feridinha que se tornara uma chaga. “ É lá na casa da amante do meu pai onde levei mais porrada”, diz o menino.
Entre leoa e jacaré, o mais grave, afinal, estava por acontecer: não obstante o menino ter informado das tristes ocorrências ao pai, este nada fez. O pior?  “Deixou de me visitar!…

Da “casa” para a “rua”

Em 2006 tinha 10 anitos mas ainda continuava entre porrada e fome prolongadas. Sem mãe e pai por perto, a rua foi o único beco de saída. “Cansado de ser batido sem culpa, um dia decidi sair da casa e comecei a andar, andar até aqui na baixa”, diz.
Mas cedo Elso também notou que a rua não é (ra) moradia ideal para pessoa da sua idade. Nem de nenhum outro. E quando tentou olhar para trás e voltar para a casa da madrasta agressora não conseguiu localizá-la. E regressou à rua onde morou duramente dois anos consecutivos.
Porém, em 2008, por algum desígnio insondável da mãe-natureza, o senhor Jorge Comé reencontra, ao acaso, o seu filho. Resgata-o. Mas também foi em vão porque não alterou o xadrez que ditou o sofrimento do filho: foi deixá-lo outra vez na casa da amante agressora. Como ninguém nasceu para morar na rua, o menino Elso afirma ter tentado suportar todas as vicissitudes de morar debaixo de um tecto onde não se é filho querido. Porque o sofrimento se agudizou para limites humanamente insuportáveis, o rapaz refugiou-se, pela segunda vez, na “casa” chamada “António Repinga”, na baixa da cidade.

 

Sorte diferente  2

Como Elso não estuda, também não sabe o que quer ser quando for grande. O mais provável é acabar sendo camponês, desempregado. Talvez professor, se a sorte lhe bafejar e voltar à escola – como cobiça. Ou então, enfermeiro. É com  que ele sonha. Enquanto isso, o certo é que está exposto a desvios, tanto é que o caminho para a marginalidade está praticamente aberto.
Se o menino Elso vive “na rua da amargura”, já o mesmo não se pode dizer de Carlitos Énio, de 13 anos, menino que frequenta a 6ª classe e vive na Polana “A”. Antes de ir à escola, o pequeno Carlitos Énio toma o pequeno-almoço e leva lanche. Mal regressa da escola, ele vai à mesa para o sumptuoso almoço. À tarde faz a revisão da lição do dia. Depois vai jogar futebol com os seus vizinhos. Volta para casa para ver alguns dos seus programas de televisão favoritos. Janta em família (com os pais e os seus irmãos). Antes de dormir numa cama limpa colocada num quarto arejado e espaçoso, recebe beijinhos do papá e da mamã. É assim todos os dias.

Governo sem dados?

Tentámos obter dados mais actualizados e pormenorizados sobre o fenómeno “meninos da/na rua”. Mas as estruturas da Direcção Nacional da Acção Social e da Direcção da Mulher e Acção Social da Cidade de Maputo, ambas subordinadas ao Ministério de Virgínia Matabele, praticamente ignoraram os pedidos que formulámos por escrito e lhes endereçámos na semana passada, tendo-os perdido nos circuitos burocráticos.
Na dúvida se há ou não intervenção oficial mais concreta – até solicitámos dados sobre adopção – a sociedade civil há tempos tenta preencher esta brecha com os seus próprios recursos. Faz o que pode com os meios que possui. A Casa do Gaiato (Boane), as escolas “S.O.S” (espalhadas por todo o país) e a “Casa Madre Maria Clara” (na cidade de Maputo) são apenas alguns exemplos dos que oferecem assistência em alimentação, vestuário, assistência medica e medicamentosa, educação básica e formação profissional. Há também os que se dedicam à desintoxicação e a vínculos para lares de transição da rua para as famílias.
Mas para fazerem um trabalho completo, as ONG’s necessitam de muitos recursos. Dados de há cinco anos indicam que só em Maputo há uma centena desses centros de acolhimento. O seu trabalho começa pelas necessidades básicas. Lutam para conseguir, por exemplo, certidões de nascimento para que as crianças se possam matricular nas escolas.
Se antes se concentravam em encaminhar as crianças desamparadas para junto das suas famílias, hoje muitas ONG’s têm o trabalho árduo de cuidar também das suas famílias ao mesmo tempo. É um trabalho cuja avaliação – positiva – só pode ser conferida se os programas que implementam resultarem no retorno das crianças recolhidas para juntos dos seus e não o inverso: das casas dos pais para as ruas novamente. Mas são dados que só o Ministério da Mulher e da Acção Social poderia fornecer mas não o fez.

Pão seco, “badgia”…e intrusos

 
Quando o encontrámos no recinto de manutenção física António Repinga – local que recebeu o nome em homenagem ao moçambicano recordista que morreu trucidado por comboio com o qual quis competir em velocidade – as folhas dos eucaliptos filtravam os raios mais teimosos do efémero sol de Maio. Havia calor a mais e frescura a menos. O saco que serve de lençol vai arejando no passeio e, à sua volta, acumulam-se vestígios de uma noite dormida ao relento. O passeio da Avenida 25 de Setembro converteu-se, desde 2008, numa espécie da moradia do Elso. É dali que ele diz ver, todos os dias, outros meninos da sua idade a irem e a voltarem da escola.
A sua boca seca denuncia que o dia anterior foi passado sem jantar. “Ontem ninguém me deu nada”, diz, acrescentando que “por isso dormi sem comer nada porque não conseguiu dinheiro com que comprasse algo para enganar o estômago”. Ingénuo, ele confessa que nos seus bons dias – sextas, sábados e domingos – “de trabalho de pedir esmola arrecada entre 20 a 70 meticais. Com 10 meticais compra um pão (5 meticais), 4 “badgias” (4 meticais) e um copo de água gelada a 1 metical. Faz isso ao almoço e ao jantar.
Mas há dias em que nas suas ásperas mãos caem 50 ou 70 meticais. Quando isso acontece, entra na esplanada da “Feira Popular”, ali ao lado,  onde pede uma boa feijoada ou um ¼ de frango. Come e volta ao átrio ou às escadas dos edifícios para tentar apanhar sono.
Como não há um mal que vem só, eis que, à calada da noite, o menino Elso tem de enfrentar outro inimigo: os sem-abrigo mais adultos que lhe procuram para lhe arrancarem a sua esmola. Fosse isso, ao menos, mas os matulões da rua, que já vivem nos seus próprios “reinos” que estabeleceram nas casas abandonadas da baixa do Grande Maputo, vão ao extremo mais desumano ainda: “ (…) com ou sem dinheiro, eles batem-me”.

Quero o meu pai e … escola”

 
Quando o meu colega Sérgio Costa perguntou: “Você sabe o que é 1 de Junho?”, o pequeno Elso, com o seu português impressionante que contrasta com a rudimentar 3ª classe feita há cerca de 5 anos, respondeu:”Sim, é o Dia Internacional da Criança”.
Mas ele não parecia muito disposto a discutir datas mesmo a da efeméride da próxima segunda-feira dedicada à sua classe social. A resposta à pergunta insistente do meu colega: “O que você quer agora?”, é de cortar espinha a qualquer sensato: “ Quero o meu pai”. Isto é o mais importante para Elso que para tal, surpreendentemente, até anda com a receita na cabeça: “Quero dinheiro para apanhar “chapa” da Junta até Cumbana”. Localizada a cerca de 4 quilómetros de Lindela, no entroncamento das vias que levam às cidades da Maxixe e Inhambane-céu, Elso garante que bastará chegar àquela localidade, onde nasceu, para localizar a sua mãe, Emília Zavala. “Eu sou muito parecido com a minha mãe… basta chegar lá as pessoas vão-me lavar até onde ela estiver”.
Elso – que só não deixa cair lágrimas porque sentimos que se esforça para que isto não aconteça – diz que não pretende regressar a Inhambane para ficar de vez e sim “para a minha mãe me mostrar onde está o meu pai para ele me levar à escola”. 
 

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