Nos próximos dias 24 e 25, a vila de Quissico vai ser o centro das atenções culturais em Moçambique. Acolhe o festival anual de timbila, naquilo que se espera venha a ser mais uma oportunidade para renovar as almas. É um momento que me faz lembrar o convívio havido em Agosto de 2004, ou seja, estou sentado nas bancadas do miradouro da vila de Quissico, a assistir ao Msaho, nome pelo qual é designada esta celebração e tenho ao meu lado o Júlio Sardinha, um português que viajara comigo de Maputo à terra dos chopis, com o propósito único de ver ao vivo a evolução de uma das mais electrizantes manifestações espírito-culturais do planeta.
Alguém já disse repetidamente que a mbila não pode ser tocada sozinha. Perde-se. É como uma lenha, você pode parti-la a meio com o joelho, mas nunca o fará a um feixe inteiro. E para os chopis, dizer isso é redundante. O chopi, por natureza, é uma pessoa agregária. Nunca vai a solo para as batalhas. Quando quer exorcizar os espíritos fá-lo em grupo, e ele sabe muito que tocar timbila é uma forma de humilhar até às cinzas os espíritos malignos. E quanto maior for o número das timbilas na orquestra, maior será o turbilhão. Maior será a força para esbater as feridas.
Estou sentado lado a lado com Júlio Sardinha, que bebe a gargalo uma garrafa de whisky para ver as coisas com a maior limpidez. Ele remexe-se constantemente. Parece um caça-bombardeiro com os reactores ao máximo, pronto a levantar voo. Para ele é inacreditável o que lhe é dado a assistir. É uma loucura.
– Ó Alexandre, onde é que estes gajos estudaram isto?
– Eles não estudaram, foi-lhes dado. Isto é uma dádiva. O toque e a dança da timbila ultrapassam os Conservatórios.
– Mas quem é o regente destes grupos todos?
– Cada grupo tem o seu regente, e todos eles são da primeira categoria.
O meu companheiro continua a beber o seu “scotch”, e no palco a loucura está instalada. O matchatchulani, nome dado ao animador que traz na mão o chocalho feito de sementes de frutos silvestres, enche o palco. Ele é o ponto de equilíbrio das cadências. É a bússola que deve ser seguida por todos. Os bailarinos, quais guerreiros humilhados por Mudungazi, empunham os escudos de pele e as lanças simuladas nos paus secos segurados com vigor. E os executantes da timbila estão aí, todos eles sentados, cada um com o seu instrumento, com excepção do contra-baixo, que está de pé.
Na orquestra de timbila não há subalterno. Na falta de uma peça, tudo sossobra. É por isso que estamos em presença de uma cascata, onde as gotas são imperceptíveis.
– Ó Alexandre, disseram-me que Venâncio Mbande é o maior por estas zonas!
– Eu não acredito que Venâncio Mbande seja o maior. O que ele teve são oportunidades. A vida é feita de oportunidades. Não existe a menor dúvida de que este artista tenha uma orquestra com um desempenho ao mais alto nível. Isso é inquestionável. Mas temos outros grupos, que também são de topo e que já demonstraram isso em muitos festivais. Acredito muito nos enigmas e dói-me saber que existem aqui em Quissico orquestras que deviam ser içadas para o mesmo patamar onde se encontra Venâncio Mbande. Mas a vida é inesperada, meu caro!
-É verdade, a vida é inesperada.
O sol está quase a deitar-se. As lagoas de Quissico, debruadas de um inexcedível verde, começam a ficar sombrias, e a festa vai acabar daqui a pouco. Mas vai repercutir-se por muito tempo no interior daqueles que aqui estiveram.