Todo autor de ficção brinca de ser Deus. Cria pessoas, situações, comanda acções, tece o imaginário de personagens que são produto genuíno de sua fantasia com o subsídio da narrativa e uma estrutura engendrada para atrair o leitor. A criação é subjugada a dois actos primordiais que se confundem pela dificuldade: o primeiro é construir mentalmente uma história com personagens influentes, participativos e com a unicidade que o distinga dos demais; o segundo é o acto de escrever, imprimindo estilo, temática e um poder de observação quase sobrenatural. A verdade é que se trata de um talento passível de ser aperfeiçoado, exige muita disposição e está alienavelmente atrelado ao hábito da leitura.
O livro em si é depositário da essência existencial do leitor e do escritor; é mais que o coração da sabedoria e a porta aberta para outros mundos que não o real, estampado diante das faces com a mais nua concretude. Escrever é um dom tão misterioso que pode distanciar um homem de seus amigos, de sua família, da vida social, mesmo que ele esteja a poucos metros, debruçado sobre o teclado do computador, à luz opaca da escrivaninha. É possível percorrer quilómetros de distância, imaginar rostos, cor de olhos, detalhes duma cachoeira que não existe. É ainda exaustivo recordar na última página tudo o que foi escrito nas anteriores para manter a coerência no curso da narrativa. E decidir o desfecho de cada personagem transforma a brincadeira de Criador em coisa séria.
Literato que se preze neste país deve ter lido José Craveirinha, Noémia de Sousa ou Mia Couto; há de ter enchido os olhos d’agua ao ler País de mim de Eduardo White e se divertido com os acontecimentos de Vozes Anoitecidas de Mia Couto; feliz quem leu Noémia de Sousa, Ungulane Ba ka Kossa, Luis Bernardo Honwana, Heliodoro Baptista e Paulina Chiziana. Como se vê, Moçambique é um palco de grandes escritores entregues ao importante serviço de recriar mundos. Mas será que ainda hoje os escritores moçambicanos estão interessados em retratar o quotidiano da vida nos bairros? Será que a literatura moçambicana se satisfaz com personagens genuínos como Eduardo White? Ou aderiu-se a um modelo comercial capaz de transformar os autores deste país em criadores de best-sellers cuja única intenção é estar entre os mais vendidos e não por sua qualidade literária?
A introdução deste texto imbui-se duma reflexão clara: se o livro é representação da existência do autor e do leitor, adquire uma importância não somente pelo objecto que é, mas pelo valor simbólico daquilo que ele carrega, ou seja, a narrativa. Ultimamente as editoras têm disponibilizado espaços (mesmo que insuficientes) aos novos escritores para publicarem livros. Não vingou neste país um verdadeiro fomento à cultura literária que pudesse revelar novos talentos com a possibilidade de concorrer no mercado. De maneira dramática, os verdadeiros escritores moçambicanos estão encurralados entre a sorte de vencer um concurso literário e sorte maior ainda de lançar um livro numa destas plataformas de auto publicação e virar um sucesso.
Quantos e quantos talentos literários (e, sobretudo talentos de artísticos de maneira geral) estão perdidos nos confins deste país, à espera de um auxílio que nunca chegará? Quantas poesias, contos e romances jazem perdidos nas gavetas, nos baús, nos caixotes das casas interioranas onde escondido está também o sonho de ser escritor? Até quando será permitido aos autores de best-sellers, inclusive importados, ocuparem a centralidade de vendas nas livrarias em detrimento de milhares de novos escritores cujo propósito é mostrar o Moçambique, desvendar seus personagens próprios, descobrir paisagens e belezas nortistas que a um sulista não é possível imaginar, como fizeram os escritores do início do século XX.
A adesão de uma sociedade ao hábito da leitura começa por um autor retrato e valorização de sua literatura. É chegada a hora de criar espaços possíveis para o surgimento concreto de novos autores e inadmissível que estes talentos sejam desperdiçados quando a demanda é imensa. É importante compreender que sem a fantasia do livro e a imaginação de quem o criou, torna-se impossível recriar culturas, ambientes desconhecidos, reflectir sobre valores sociais e pessoais passíveis de debate. O livro e as letras têm a tarefa de construir o país, simbólica e literalmente.
Euclides Cumbe