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Quando a Guerra vira o guru do cinema

Quando a Guerra vira o guru do cinema

Como tornar-se um guru de cinema mundial quando se é africano, sem recursos técnicos e com parcos meios financeiros? A vida do cineasta moçambicano, Ruy Guerra, é uma completa receita para quem se propuser fazer da sétima arte a sua actividade profissional.

Não resta dúvida de que não teria havido melhor forma de encerrar o 6º Festival Internacional do Filme Documentário (Dockanema) do que uma conversa informal com o conceituado cineasta moçambicano Ruy Guerra. Até porque, há 25 anos a residir no Brasil, muitos esforços se mobilizaram para a sua vinda.

O encontro com Ruy Guerra, uma vida dedicada ao cinema, foi para muitos cineastas e realizadores que encontram na sétima arte, não somente uma arte, mas também um ofício, uma oportunidade ímpar.

Nos meados do século XX, o autor de Fuzis acompanhou (in loco) o processo da edificação do cinema na Europa, em particular nos países como Itália, Polónia e França, com forte tradição, por onde deambulou à procura de uma escola técnica para a sua formação, até que aterrou em Paris, na Escola dos Altos Estudos Cinematográficos.

Terminada a formação – que em muitos aspectos não fora fácil e, depois de ter acompanhado a vaga da Nouvelle Vague que se estabelecera na França, em 1954, – partiu para o Brasil, num périplo que descreve como sendo o segundo momento da sua jornada cinematográfica. Na altura, os ventos da história associaram o cineasta a um importantíssimo movimento do cinema brasileiro, o Cinema Novo. Transcorriam os anos ‘60.

No entanto, engana-se quem pensa que os temperamentos da história do cinema, vividos por esta personalidade, estavam concluídos. Afinal, com a conquista da Independência de Moçambique, em 1975, o então Presidente da República Popular de Moçambique, Samora Moisés Machel, convida-o para mais uma nobre missão: criar as bases do que seria, posteriormente, o cinema do então, novo ‘Estado-nação’, com a criação do Instituto Nacional do Cinema, actual Instituto Nacional de Cinema e Audiovisual (INAC).

Estas e outras razões levam Ruy Guerra, actualmente com 80 anos de idade, a afirmar: “Pessoalmente, penso que esses foram os três momentos mais importantes da minha vida cinematográfica. Perguntem-me se será exigir demais da vida que eu queira ter um quarto momento. Mas eu espero ter”, diz referindo-se a uma época na qual se dedicará também à produção de literatura.

Contornar inconvenientes

Em relação ao cinema, a história de Ruy Guerra é uma epopeia constituída por três momentos, estando o quarto em elaboração. O que marca o primeiro momento é a superação das dificuldades (em terras alheias) na luta pela formação técnica na Europa.

“Na verdade tudo começa com uma incógnita. Eu não sei porque é que comecei a fazer cinema. O facto é que escolhi o cinema, ainda jovem, aqui em Maputo”, afirma. Não tardou muito para que entre os anos ‘40 e ‘50 do século passado começasse a procura de uma escola de formação técnica em cinema.

Ora, na época em alusão só havia, em todo o mundo, três institutos de cinema apenas. Um em Roma (Itália), outro na Polónia e, finalmente, a Escola dos Altos Estudos Cinematográficos em Paris, na França. Refira-se que cada uma destas escolas tinha o seu inconveniente para Guerra. Daí, o itinerário por todas para escolher a que melhor se adequava às suas condições.

Na época – 1940 a 1950 –, a cidade de Roma havia acompanhado o memento mais importante da história mundial do cinema, em particular, do cinema italiano, de que derivou o movimento neo-realista que produziu muitos nomes consagrados do cinema italiano como, por exemplo, a realizadora Isabella Rosselini.

Todavia, a Escola de Roma tinha um grande inconveniente. “É que os estudantes estrangeiros deviam ser apenas ouvintes”. E como tal, “não podiam participar nas aulas práticas. E eu achava que isso não seria muito bom para alguém como eu que não sabia absolutamente nada sobre o cinema”, conta.

Quando a língua nos limita

Fracassada a ideia de se formar nas terras de Leonardo da Vinci, havia uma segunda opção. A Escola de Loads, na Polónia – simplesmente sedutora – que também formou o célebre cineasta Polansky. A longevidade da duração do curso, a falta de fundo para sustentar o curso, mas acima de tudo os limites linguísticos foram os factores que levaram o cineasta a outras paragens.

Ou seja, “O curso durava seis anos. A Escola de Loads começava com uma formação teórica geral e, só depois, introduzia as aulas práticas, o que não me estimulou. Mas principalmente porque eu tinha de falar polonês”. Pior ainda, “eu não sabia de quantos anos precisaria para aprender a língua. Quer dizer, teria de ficar quatro anos a aprender a língua e dois anos para fazer um curso geral e depois passar mais seis anos para fazer o cinema.”

Enfrentar a língua

Entretanto, a Escola dos Altos Estudos Cinematográficos, em França, foi a última opção. Mas, o maior constrangimento foi exactamente o seu alto nível. Ou seja, “os franceses não tinham nenhum instituto cinematográfico pelo qual eu iria começar para chegar aos Altos Estudos Cinematográficos”.

Entre receios e ansiedades, o autor do Fuzis, um clássico documentário do cinema brasileiro, revela que “assumi que com um ano em França eu podia falar francês para fazer o curso que durara três anos, os primeiros dois dos quais eram teóricos e um para se fazer a prática”, diz.

A surpresa do primeiro momento

“Este foi o meu primeiro momento importante na minha trajectória cinematográfica. Portanto, a fase do aprendizado, em que me tornei indivíduo fora do meu país num contexto cultural muito rico que era a França de 1950, com toda a tradição do iluminismo, da literatura, da pintura, um ambiente totalmente instigante”, conta Ruy Guerra, referindo-se a uma realidade que lhe era previsível.

Opostamente a isto, “o que eu não contava e que tornou este momento tão importante é que coincidiu com o momento da Nouvelle Vague, um movimento francês com uma série de características bem determinadas. Uma política de filmes muito mais baratos contra a grande indústria. Uma política na busca de um autor, uma discussão muito teórica – como muito bem os franceses gostam de fazer os debates – buscando perceber até que ponto o cinema era uma arte”.

Refira-se que o cerne da discussão era em que medida o cinema era uma arte, contrariamente à concepção paradigmática sobre a arte do século XIX. Ou seja, o conceito de arte do século XIX preconizava que o autor era único. Ora, contrariamente a isso, o cinema, o dito sétima arte, além de máquinas envolvia muita gente. Então, será que se podia enquadrar o cinema no campo das artes?

Então, “é o momento em que entra em discussão o assunto – em que felizmente eu estava lá para poder presenciar – e por diversas circunstâncias esse debate é levado a cabo por (jovens) críticos do cinema da revista “Cahedo Cinemà” e que por acaso eu me liguei a este debate porque fazia parte da revista Positif que não tinha muita visibilidade por ser considerada da Esquerda”.

Mais importante ainda é que este episódio foi “extremamente rico para uma consciencialização em volta do cinema. Para mim, foi uma oportunidade poder participar nestes debates, aprofundando temas teóricos, com muita ênfase, muito antagonismo e agressões verbais de parte a parte”, realça.

Aliás, tal importância não somente se reflectiu na perspectiva teórica como também “numa prática de saber e de ser obrigado a pensar de uma forma mais profunda o que é de facto o cinema”, com a produção do filme “Os Cafajestes”, em 1962, no Brasil.

Mas a língua impõe-se

A concepção da ideia de viver num país em que não se fala Português, associada ao convite para a realização de um filme no Brasil, Ruy Guerra, há muito estimulado para abandonar a Europa, partiu para aquele país da América latina.

A partida para o Brasil pressupunha o início da sua carreira cinematográfica, algo que foi uma verdadeira frustração, pois o filme não se realizou imediatamente. “Vendi a passagem para a Europa e fiquei no Rio de Janeiro”, revela.

“Porque era lá onde se encontrava parte significante da minha geração. Lembro-me que íamos comprar revistas de Tarzan, os livros de Jorge Amado, de Érico Veríssimo, de Carlos Drummond de Andrade, o que fez com que tivéssemos uma cultura muito instigada pelo Brasil, acima de tudo porque tínhamos o Brasil como um Moçambique grande”.

De qualquer modo, “cheguei ao Brasil numa época histórica muito favorável. Ou seja, um mês depois de o Brasil ter ganho a primeira copa do mundo em futebol, em 1954. E segundo porque estávamos na época do 21º Presidente do Brasil, Juscelino Kubitschek, em que havia grande orgulho de ser brasileiro e em que se acreditada muito no futuro, com um grande ímpeto que permitia que os sonhos não fossem só loucura mas possíveis”.

Edificar o Cinema Novo

Apesar de nos anos ‘50 e ‘60 ser cineasta significar “marginal e louco, da mesma forma que ser actriz pouco diferia de ser prostituta”, pensar nos sonhos como algo realizável concorreu muito para a “formação do embrião do Cinema Novo”. Tal movimento que não somente era diferente do Nouvelle Vague da França, pela sua perspectiva em termos de estilo, de género dramático mas acima de tudo pela busca da “de uma identidade de um Brasil diferente do da imagem oficial”.

Um Brasil que não fosse somente “do futebol e samba, mas que possuía outras dimensões humanas, regionais, raciais e outros aspectos que senão escondidos não eram tornados visíveis e que nós, como cineastas, achávamos que tinham que ser escancarados e postos na tela, para que uma vez reconhecidas (tais situações) fossem transformadas”. Portanto, “fizemos um cinema na busca da identidade brasileira e que pretendia ser transformador”.

E o cinema assume um papel social

“Não éramos tão ingénuos por isso sabíamos que o cinema sozinho não podia fazer esta transformação. Mas também acreditávamos que poderíamos participar no processo cultural que ajudasse na tomada de consciência para que tais necessidades fossem transformadas pelos poderes políticos e pelas forças sociais do país”, diz.

O Cinema Novo durou muito pouco tempo, porque imediatamente depois do Golpe de Estado de 1964 veio a ditadura militar que perdurou 20 anos, e não houve mais espaço para fazer o cinema. A ditadura militar – como as demais a que se convencionou chamar “os longos anos de chumbo – foi sangrenta, violenta, cruel e sufocante, sobretudo nas áreas culturais”.

Mas mesmo assim, “o facto de ter chegado ao Brasil naquele momento, ter podido participar no movimento do Cinema Novo, e produzido filmes que foram extremamente importantes para a juventude brasileira – na luta política contra a ditadura – já justifica que mais uma vez fui beneficiado pela sorte dos ventos me levaram para a França na época da Nouvelle Vague e que me terão levado para o Brasil nesse momento do Cinema Novo”, revela o artista visivelmente orgulhado.

“Tristemente, os demais anos foram de sofrimento, de ditadura, de luta, de revolta, de desgastes pessoais e profissionais. Mas eu não sabia que haveria um momento tão impotente quanto os dois primeiros.”

A independência de Moçambique

“Este é um dos momentos que poucos cineastas tiveram na história do cinema. E eu tinha uma consciência clara de poder voltar 25 anos depois para a minha terra natal e poder – na minha área profissional, já cineasta realizado – participar num processo tão importante da criação de um cinema moçambicano”, afirma Ruy Guerra.

No entanto, para o Reitor da Universidade Técnica de Moçambique (UDM) que outrora fora ministro da Informação há um facto curioso na personalidade de Guerra.

É que “contrariamente, a muitas das grandes vedetas que se conhece neste mundo do cinema, Ruy Guerra veio com humildade. Ele veio para trabalhar”. Tendo, “fundamentalmente, actuado na produção, distribuição do cinema. Operou no cinema móvel, para a criação de salas populares para a realização de espectáculos de forma a tornar o cinema acessível para a população do país”.

Afinal, conforme o próprio Ruy “o que me parecia mais importante era criar as estruturas de distribuição do cinema (que sofrem até hoje porque elas são dominadas pelo sistema de distribuição americano que impede que os filmes produzidos por nós cheguem ao público). Mas também e, acima de tudo, a formação de quadros técnicos na área cinematográfica”.

É por essa razão que em finais dos anos ‘70 e princípios dos ‘80, por iniciativa própria Guerra mobilizou uma série de cineastas progressistas, grandes profissionais e com elevada capacidade técnica, que se disponibilizaram a vir a Moçambique para dar cursos na área do cinema.

Isto faz com que parte significante da velha geração dos cineastas moçambicanos se identifique como produto desta acção.

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