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Prédio Pott – A agonia de um símbolo

Prédio Pott - A agonia de um símbolo

É um fantasma na baixa da cidade de Maputo, em pleno século XXI, ainda por cima nos “arredores” da realização do primeiro campeonato do mundo de futebol em África. Aquilo que resta do Prédio Pott, não será mais do que a nossa incapacidade conjunta – sobretudo daqueles que têm os instrumentos políticos – de transformar as cinzas em

plenitude de vida. Pois, se não existisse essa incapacidade, hoje não estaríamos em presença de uma vergonha nacional. O Prédio Pott é um monumento. Com certeza! É uma réplica do passado histórico que pertence à humanidade e que, por isso mesmo, não pode ser apagado. Hoje vivem naquele local marginais de vária índole, drogados “pesados”, dementes, doentes aparentemente seropositivos e outros incapacitados que ali encontram acolhimento, no meio de um ambiente simplesmente abominável. Desumano.

 

 

Num dia desses – de risco próprio – decidimos fazer uma visita ao local. Ver o que se passa lá dentro e sentirmos, nós próprios, o lado execrável da vida, onde a existência é celebrada entre dejectos humanos e animais. Há muitos insectos indescritíveis por todo o lado e vermes e cães vadios, que ali moram sem que ninguém os importune.

 

 

Chegámos por volta das 10 horas da manhã: eu com o bloco e caneta na mão e o Sérgio Costa com a sua Canon a tiracolo, ou seja, em riste. Não sabemos o que nos pode acontecer a qualquer momento. Porque o Prédio Pott foi convertido num antro pronto a gerar sangue. É preciso ter cuidado para você entrar ali, pois, ao mínimo deslize, pode ser agredido até a morte ou violado sexualmente. E nós tinhamos a consciência disso, mas precisavamos de penetrar e sentir o cheiro do diabo.

 

 

Está um miúdo sentado logo à entrada, junto a uma lareira que fervia uma panela de qualquer coisa que não conseguimos saber o que era. Olhou para nós sem se espantar, deixando-nos divisar no seu olhar uma pessoa perigosa, sem qualquer sensibilidade humana. Ele cozinhava no meio de fezes frescas e outras secas, entre pequenos charcos de chuva e urina que produziam vermes, pequenos e grandes. Há gatos de todos os tamanhos vagueando tranquilamente, farejando as fezes e outras imundícies e ainda outros gatos terrificantes, sentados ao lado do miúdo, que cozinha e fuma tranquilamente, sem se preocupar connosco.

O Sérgio Costa – mais ousado do que eu – perguntou ao nosso personagem se podíamos entrar, e este anuíu com a cebeça. E lá fomos nós, escadas acima, à procura de outras nuances dos viventes das ruínas do Prédio Pott que, mesmo assim, dão amparo àqueles moradoress do inferno. Eu tremia de medo, porque progredimos até nos encontrarmos num patamar em que já não se podia voltar atrás. Nos degraus é necessário escolher os locais para pisar porque as fezes infestam todo o espaço. O cheiro é mais do que nauseabundo. De vez em quando há uns gatos que param à nossa frente, outros que passam, olhando-nos com estranheza. O Sérgio parece estar também a ganhar medo, mas já lá estamos, temos que avançar.

O silêncio é total e, de repente, aparece-nos aquilo que parece um oásis no inferno: num dos cantos do grande edifício estão duas senhoras deitadas numa esteira, com roupas – por estranho que pareça – limpas. Uma delas tinha um aspecto saudável e agradável como mulher e a outra, muito magra, denunciava uma pessoa doente. Mas como é possível encontrar naquela fossa, pessoas limpas, cozinhando e comendo bem? Esta é a pergunta que fizemos e que ficou – obviamente – sem resposta.

De repente apareceram dois jovens que fumavam – pelo cheiro empregnado – uma canabis sativa , aos quais o Sérgio cumprimentou como se já os conhecesse.

Eles também corresponderam, continuando a fumar tranquilamente. O Sérgio teve medo de os fotografar, mas fotografou as senhoras, que nos olhavam de soslaio, sem saberem muito bem o que andávamos por ali a fazer.

É isso: o Prédio Pott é isto que descrevemos e, à noite, o melhor é você não entrar, porque todo o inferno concentra-se ali, juntando dementes, drogados, frustados e criminosos de alto perigo.

A dança da restauração

Depois do incêndio que deflagrou em 1990, destruindo o Prédio Pott, nunca mais houve uma acção concrecta no sentido de restaurá-lo. Em tempos, a Associação Industrial Portuguesa manifestava a intenção de reabilitá-lo, entretanto, essa proposta foi rejeitada porque eles colocavam como condição a doação total do edifício pelo governo moçambicano. Também o nosso governo já colocou a possibilidade de se reabilitar o edifício e construir-se ali um centro cultural luso-moçambicano, à semelhança do Centro Cultural Franco-Moçambicano, mas esse plano também nunca mais andou.

Dos contactos que a nossa Reportagem efectuou junto das autoridades culturais moçambicanas, não conseguimos obter qualquer informação sobre se existe algum plano em carteira para a restauração do Prédio Pott. E enquanto isso não acontece, temos ali na baixa da cidade de Maputo um covil fértil para o crime, uma ferida muito profunda que nos dói a todos nós.

Recordando o drama

O incêndio do Prédio Pott ocorreu em 1990 no início de uma tarde em que os bombeiros tiveram muita dificuldade em extinguir o fogo rapidamente, por falta de água disponível nos poucos carros de combate operacionais. Nesse dia foi activado o sistema interno de combate a incêndios da empresa Mosopesca localizada na altura na Rua Bagamoyo, através de pessoal próprio, treinado e equipado com diversos tipos de extintores. Um grupo de cerca de 30 trabalhadores do sector de Aprovisionamento e de Frota, prontamente foi destacado para o local, e ajudou naquilo que foi possível para evitar a propagação do fogo a outras partes do edificio, socorrendo algumas famílias e colegas que na altura também viviam no prédio. Foi activado um sistema de abastecimento a partir de algumas embarcações pesqueiras industriais na altura estacionadas no Porto de Pesca de Maputo, com o fornecimento de água a partir das bombas hidráulicas das embarcações e utilizando água da baia (a água salgada foi a única hipótese encontrada na altura, como alternativa). Tentou-se igualmente fazer a bombagem directa a partir das embarcações pesqueiras distantes do local em cerca de 800 metros, mas não havia tubagem suficiente para tal operação. Então foi o caos.

Um pouco por todo o lado

 

 

O Prédio Pott será apenas uma das muitas verrumas apontadas para o nosso colectivo cultural. Criando-nos mágoas agravadas por outros edifícios que, mesmo sem serem abandonados, são convertidos, perdendo a sua essência histórica. Só esperamos que a sensibilidade tome conta daqueles que têm a prerrogativa de ressuscitar aquilo que já é um mamarracho antiquado. Ainda bem que, ali mesmo ao lado, estão a ser executadas obras de reabilitação daquilo que já foi o “Scala”: um café que vai eternamente rivalizar com o “Continental”. O que não sabemos ainda é o que vai sair depois das obras, porque se a cidade continuar a andar ao ritmo dos que têm dinheiro e não dos que têm dinheiro e alma, amanhã não teremos história para contar.

 


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