Diz-se que um excelente barómetro de aferição da doçura da população de uma aldeia é a forma como os cães são tratados pelos aldeões. Se os animais, na presença de um estranho, se encolherem perante uma festa ou se apresentarem assustadiços com a cauda entre as pernas, é sinal de que constantemente alguém lhes bate. São aquilo a que chamamos, na gíria canina, cães batidos. Estes animais apresentam-se infelizes, abatidos, cabisbaixos, ansiando por afectos de pessoas de fora. Se, pelo contrário, os animais saltam, brincam e abanam incessantemente a cauda perante um estranho, é sinal de que são bem tratados pelos aldeões. Diz-se então, quando se verifi ca a primeira reacção, que os aldeões não são boa gente. Ao invés, se a reacção for a segunda, aquela população é boa gente.
Este preâmbulo vem a propósito dos constantes e omnipresentes apelos à paz a que temos vindo a assistir nos últimos tempos. Esta valorização súbita da paz faz-me pensar que estamos à beira da guerra. Só assim se pode compreender que os apelos à paz estejam tão impregnados em todos os discursos, oficiais e não oficiais.
Desde o Presidente, passando pelo Governo e pela inefável Oposição Construtiva, até aos fazedores de cultura encostados ao partido no poder – já houve recitais de poesia pela paz e vai haver concertos apelando igualmente à paz – a palavra simbolizada pela cor branca é recorrente em todos os discursos.
Não se percebe bem o porquê desta adoração, deste endeusamento da paz, agora que passam 19 anos da assinatura do Acordo de Roma. Será porque o antigo líder guerrilheiro, Afonso Dlakhama, ameaçou incendiar o país após a última derrota eleitoral?
Não me parece, porque o mesmo já sucedeu na sequência da publicação de resultados em pleitos anteriores, onde a vitória do partido no poder foi bem mais escassa e contestada, e ninguém pronunciou semelhantes apelos.
Será pela ocorrência do recente tiroteio em Maringuè entre as forças da ordem e as últimas estruturas militares da Renamo que recusam ser desarmadas? Não me parece porque esses homens estão ali acantonados desde 1992. Então porquê agora?
Não será porque os nossos governantes se têm comportado como os aldeões que, cobardemente, tratam mal os cães? Não teremos nós, neste país, muitos cães demasiado batidos? Ao ouvir, na semana passada, as palavras violentas e intimidatórias do mais alto responsável da PRM – “qualquer tentativa de manifestação será violentamente reprimida” – tudo leva a crer que sim.
Mas cuidado: à primeira oportunidade, a matilha de cães batidos, que cresce a um ritmo avassalador – madjermanes; os antigos combatentes; aqueles que, mesmo trabalhando muito, não trazem ao fim do dia 50 meticais para alimentar os filhos; aqueles que diariamente arriscam a vida transportados como gado sem o mínimo de dignidade e ao seu lado vêem desfilar carros topo de gama com os vidros fumados transportando gente engravatada que fala ruidosamente ao telemóvel último modelo; aqueles que dão aulas a turmas de 70 alunos debaixo de um cajueiro e que ganham três mil meticais por mês –, irá morder a mão do dono.
E, nessa altura, ao contrário do que diz o secular provérbio árabe, os cães não irão deixar a caravana passar.