No seu livro sobre “A Violência Doméstica em Moçambique”, a jornalista Rosa Langa expõe as angústias e mágoas experimentadas pelas vítimas. Na cerimónia de lançamento, os moçambicanos ficaram repugnados com o fenómeno. O que não se percebe é porque ele prevalece.
No dia 28 de Junho, quando se publicou o terceiro livro da jornalista moçambicana, Rosa Langa, e a primeira para a conselheira social, Leonor Domingos (o que aconteceu nos Estúdios 222, na cidade de Maputo) todos os intervenientes narraram experiências pessoais em relação à violência domésticas. Classificaram-na por repugnante. Outros afirmaram que a praticam com naturalidade.
Em “A Violência Doméstica em Moçambique”, a obra cuja publicação foi patrocinada pelo FUNDAC, as autoras coleccionam depoimentos de mulheres vítimas do mal. A delicadeza do assunto, e a forma emocionante como foi discutido, quase tornou a cerimónia do lançamento da obra uma espécie de catarse social. Acompanhemos, a seguir, como algumas pessoas reagiram sobre o assunto.
“São violentadas por serem mulheres”, Benvinda Levy, ministra da Justiça
“Temos mulheres e homens que assumiram ser vítimas da violência doméstica, mas, certamente, nesta sala, haverá muitas pessoas que nunca irão assumir, publicamente, que sofrem do mal. De uma ou de outra forma, vivemos a violência, ou porque somos parte dela? ou porque ela acontece ao nosso lado.
Há vezes que intervimos para estancá-la, noutras não fazemos nada. Ela pára-nos e sentimo-nos impotentes para inibi-la. A obra que nos é apresentada hoje fala sobre a experiência de pessoas que tiveram a coragem não só de partilhar este pesadelo – que trespassa por muitas vidas – mas que também tiveram a ousadia de dizer basta. A violência não é aceitável.
Homens e mulheres querem-se parceiros e amigos e não uns mais fortes que os outros. Uns exercendo o poder e, para tal, recorrendo à violência. O quotidiano oferece- -nos exemplos de que a nossa sociedade trata homens e mulheres de forma diferente. Muitas vezes, a discriminação de que são vítimas resulta única e exclusivamente do facto de serem mulheres.
A luta contra a violência depende da forma como educamos as meninas e os meninos. Porque disso e da maneira como os casais se relacionam determina-se como as futuros homens e mulheres irão construir a sua vida. É sobre isto que devemos reflectir. A maior parte das pessoas que está aqui é pai e mãe e, certamente, no dia em que recebe os seus filhos planeia o melhor para os mesmos. Ninguém quer que a sua filha seja maltratada, desprezada, usada e abusada por alguém”.
“O sistema violenta duplamente as vítimas”, Sara da Almeida, estilista
“Falar, publicamente, sobre a minha experiência em relação à violência doméstica é uma expressão de superação a este mal, ao mesmo tempo que é uma maneira de ajudar outras mulheres a não passarem pelas mesmas situações. Normalmente, o violador dos nossos direitos é uma pessoa muito próxima. Que tem a capacidade de influenciar o nosso pensamento, culpando-nos pelo seu comportamento. No meu caso era o meu ex-marido.
Quando somos agredidas, por qualquer motivo, as pessoas questionam-nos as razões. Nunca se interroga ao agressor. A culpa da violência, normalmente, é atribuída à mulher. O Gabinete de Atendimento à Mulher e Criança Vítimas da Violência Doméstica foi concebido, existe e está funcionar, mas falta muita coisa para que ele resolva os problemas da mulher.
Por exemplo, depois de agredida, eu fui meter queixa no Gabinete. Algum tempo depois, o processo foi conduzido ao tribunal que me chamou, orientando-me para, num intervalo de três dias, encontrar um advogado a fim de me prestar assistência. O problema é que, na altura, eu não tinha dinheiro para contratar um jurista. Acredito que muitas vítimas da violência doméstica não têm.
Por isso, na minha opinião, o Gabinete devia ter, pelo menos, por algumas horas, um advogado para assistir as vítimas. Da outra vez, fui agredida e retornei à mesma instituição de onde fui orientado a ir para o Hospital Central (HCM) a fim de obter o laudo. No HCM mandaram-me voltar 45 dias depois. Insistindo para que me atendessem, expliquei as razões da minha urgência em relação aos exames, mas, mesmo assim, eles não mudaram de postura.
Depois de retornar ao Gabinete, sem resultado favorável, os técnicos disseram que não podiam fazer nada – o que podia ter sido diferente se existisse lá um médico responsável. No entanto, mesmo assim, 45 dias depois – desta vez, sem cicatriz nenhuma – voltei ao HCM para dar rumo ao processo. Nesse dia, não fui atendida porque o médico chegou tarde. Deixei a minha reclamação, incluindo os meus contactos. Já passam quatro anos e ainda não fui contactada. Então esse procedimento violenta duplamente as vítimas”.
“Não se acanhem, a violência mata” – as autoras
Rosa Langa considera que – em resultado de tudo isso – “é preciso que cada um de nós faça o seu papel para evitar que a violência doméstica se torne um cartão-de-visita nas nossas famílias”. Leonor Domingos afirma que “além de ser a co-autora do livro, também sou uma das vítimas de vários tipos de violência. Quando a jornalista me convidou a participar no projecto – cuja batalha era a recolha de depoimento de mulheres agredidas – senti-me acarinhada pelo facto de que isso constituía um desabafo”.
Além do mais “pude perceber, afinal, que não estava sozinha nesta crise. Foram mais de 12 anos passando por situações de violência. E hoje, felizmente, estou mais tranquila. Quero alertar a todas as vítimas para que não se acanhem porque a violência mata”.
“A violência é assumida com naturalidade”, Mateus Kathupa, político
“No dia 14 de Junho de 2013, na qualidade de membro da brigada central do Partido Frelimo, fui dirigir uma reunião na cidade de Maputo. No local havia poucas cadeiras. Dirigentes da Educação e Cultura – incluindo eu – estavam sentados nas cadeiras. No entanto, todas as mulheres que chegavam, sentavam-se no chão. Senti um arrepio.
É que naquela situação, para todos os homens, era natural que as mulheres se sentassem no chão e nós nas cadeiras. Ninguém dentre nós cedeu o seu assento. Findo o encontro, pedi para que no seguinte todos, todos sentássemos no chão.
Essa experiência ilustra uma forma de violência assumida com naturalidade. Não me quero referir às situações horríveis que são desenvolvidas nessa obra”.