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Paulina Chiziane: “Isto chama-se preconceito e alienação cultural!”

Paulina Chiziane: “Isto chama-se preconceito e alienação cultural!”

A célebre escritora africana, Paulina Chiziane, considera que fazer da figura do curandeiro o diabo do século XXI é um preconceito cultural e uma tentativa de alienação cultural aos moçambicanos. Nos dias que correm, a escriba possui mil e um argumentos que defendem a tese. Até um (novo) livro já começou a escrever…

Nos dias quem correm é voz comum que contrariamente ao que acontecia na antiguidade o curandeiro se tem tornado numa entidade vil, muito em particular, nos espaços urbanos como a cidade de Maputo, por exemplo. Em resultado disso, para alguns, o curandeiro ganhou o sentido de diabo.

No entanto, a conceituada escritora moçambicana, Paulina Chiziane, encontra em tal atitude um atentado contra a cultura e tradição moçambicana. Por isso, argumenta que se não fosse pelo papel desempenhado pelos curandeiros, quando, no século XV, os europeus chegaram ao continente africano não teriam encontrado negros saudáveis, bonitos e fortes, os quais – além de escravizar brutalmente – vendiam-nos nas Américas.

Decorrente disso, para si, considerar que essa figura é o diabo dos nossos dias, no mínimo, é um preconceito cultural. Uma tentativa de alienar os africanos. Com esta premissa, os leitores (mais saudosos) dos seus livros podem aguardar a sua nova obra literária.

Naquela noite, no Instituto Cultura Moçambique-Alemanha, em Maputo, criou-se uma espécie de lareira moderna. Paulina Chiziane e Orlando José da Conceição, duas bibliotecas ambulantes, recorrendo à tradição oral que caracteriza os povos africanos, passaram um conjunto de valores, experiências e advertências aos seus contemporâneos, mormente os jovens.

Na ocasião a Timbila Chopi, a mulher e a literatura moçambicana, os recursos minerais e energéticos – que se descobrem sistematicamente no país – além de animarem os discursos políticos nacionais, a Imprensa local, bem como a figura milenar do curandeiro, o médico tradicional africano, constituíram o roldão dos temas que prenderam os jovens no mesmo espaço durante mais de duas horas. Contar-te Estórias foi como se rotulou o evento.

Na capital moçambicana, já há bastante tempo que se tornou voz comum que (alguns) os curandeiros são falsos. Paulina comunga da opinião. No entanto, o sentido que alguns cidadãos não encontram no facto de tal personagem social – em plena época do vigor da sociedade de informação – valorizar a actividade de marketing para divulgar e promover o seu ofício serve-lhes de argumento para aguçarem as suas descrenças nos médicos tradicionais.

Dizem que o marketing publicitário dos curandeiros os tornou na coisa mais vil dos nossos dias. Curandeiro que é não faz publicidade. Até há alguns anos era assim. Mas, convenhamos, as sociedades são dinâmicas e os comportamentos humanos – incluindo os curandeiros – são influenciados pelo referido dinamismo.

O confundir-se os negros com a figura do diabo é bem antiga. De acordo com Chiziane, foi uma produção da igreja do ocidente. Ora, se nos dias que correm o ocidente pretende desvirtuar os médicos tradicionais africanos, os curandeiros, atribuindo-lhe o estatuto de diabos – isso não deve ser aceite. Para si, os curandeiros são pessoas com a sua importância nas nossas sociedades.

Numa situação em que muitos de nós, os moçambicanos, não temos muita informação sobre o nosso passado, as nossas práticas tradicionais, incluindo o curandeirismo, a medicina africana – devido ao desenvolvimento tecnológico – acabamos por corroborar com o raciocínio de acordo com o qual os curandeiros são diabólicos. E levando essa posição ao extremo, passamos a vida a vilipendiar o curandeiro – assim lamenta Chiziane.

É nesse sentido que, para desconstruir, ou, no mínimo, tentar desconstruir esse ponto de vista, uma maneira (linear) de pensar que nos indica um só caminho, a escriba, ainda que tenha interrompido a meio caminho o seu discurso, naquela noite apareceu com argumentos formais.

No continente africano, antes da chegada dos árabes, o povo vivia feliz com a sua medicina. Passado algum tempo, chegaram os europeus que olharam para os negros, fortes e felizes, e disseram: Que pretos tão bonitos! Vamos vendê-los nas Américas. Tais populações de negros eram fortes e felizes porque foram tratadas pelo seu curandeiro. É esta a percepção de Paulina Chiziane. Mas os seus fundamentos não terminar por aí.

Afinal, passado algum tempo, “os europeus baptizaram-nos, cristianizaram-nos com os seus nomes. Disseram que o diabo é/era preto. Isso presenciei na minha infância, aos dez anos de idade, no catecismo católico. Ao longo dos anos a situação transformou-se. O diabo já não é, necessariamente, o preto mas aparece com a cara de um curandeiro”, lamenta Paulina ao mesmo tempo que explica essa ostracização do curandeiro no espaço social pode ser definido como “um preconceito e/ou alienação cultural”.

É que na percepção de Chiziane, a mesma autora de Niketche e O Sétimo Juramento, se não fosse pelo papel desempenhado pelos curandeiros da antiguidade, quando os europeus chegaram ao continente africano não teriam encontrado pretos (no sentido de cidadãos africanos, o quais mais adiante foram brutalmente escravizados) felizes, saudáveis. É fundamental e salutar que se compreenda isso!

A partir daqui, apesar de que quando feita uma análise profunda no centro da cidade de Maputo nada mais se encontra além de uma proliferação desenfreada de curandeiros, alguns dos quais afirmam que curam a SIDA, uma enfermidade que só possui tratamento paliativo, talvez façam sentido os pronunciamentos de Paulina Chiziane quando, em certa ocasião, considerou: “O curandeiro é o guardião da religiosidade e da sabedoria africana. É o guardião de toda uma cultura moçambicana”.

Estatísticas que (não) mentem

Conforme a abordagem de Paulina Chiziane, não devem restar dúvidas de que o curandeiro é uma pessoa (muito) importante na nossa sociedade. Basta que se tenha em mente que, segundo a escriba, “pelas estatísticas nacionais, só 30 porcento da população moçambicana é que tem acesso às unidades sanitárias. Os restantes 70 por cento de cidadãos realizam as suas consultas no curandeiro”.

Mais do que isso, perante a situação de pobreza em que nos encontramos; diante da nossa realidade cultural, em relação aos curandeiros, pode-se engendrar uma série de questões. “O que faremos? Iremos transformar o curandeiro em inimigo ou em nosso amigo? A resposta estratégica é transformar o curandeiro no amigo da sociedade, mas, em contra-censo, infeliz e sistematicamente, tem-se vilipendiado os curandeiros”, lamenta Chiziane.

No entanto, que se reconheça que é verdade que existem curandeiros malandros. Em que parte do mundo não há meliantes? Mas, provavelmente, a pergunta pertinente por se fazer seria reflectir no investimento que tem sido feito desde a época anterior à chegada dos europeus a África até à actualidade em relação aos curandeiros.

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