Para continuarmos  a fazer jornalismo independente dos políticos e da vontade dos anunciantes o @Verdade passou a ter um preço.

Toma que te dou: Passou por mim e não disse nada

As temperaturas são muito baixas para quem está habituado a viver debaixo de um estado de tempo que, em média, ronda os trinta graus Celcius. Faz um frio de enregelar e queimar os ossos até à medula. O sol está nas costas das nuvens, escondido, e impossibilitado de irradiar o seu esplendor. Não me parece que vá chover, embora a neblina se recuse a ser amistosa. Sopra uma brisa leve vinda do sul sobre o mar glauco. É maré cheia e toda esta baía que se estende suave torna-se uma almofada para o espírito.

Estou sentado num dos bancos da marginal, olhando para o mar que me convida sem cessar. Dou as costas à cidade inteira porque os barcos à vela que se vêem ao longe me fascinam. Entrego-me à exuberância do palmar que se ergue do outro lado onde a cidade da Maxixe se vai tornar no principal esteio de toda a vitalidade económica da zona. Há um iate que me é familiar, ancorado ao largo, em silêncio.

E no espaço não vejo os flamingos que voaram para os seus habitats, onde vão esperar que a maré vaze e de novo voltem para esgravatar o alimento nos bancos de areia que se vão desnudar depois de as águas baixarem, num ciclo de não acabar que começou no princípio do princípio da existência da própria vida.

Agrada-me estar ali sozinho. Subvertendo as palavras. Inventando destinos inalcançáveis mas que se encontram aqui muito próximo de mim. Não quero saber nada do frio aspergido pela atmosfera, até porque estou bem agasalhado. Trago vestida uma camisola grossa, de algodão, um cachecol de lã, calças de ganga que me dão conforto, sapatilhas compradas no mercado “dzudza” e peúgas que me protegem os pés.

O resto está por conta do mar que não me deixa sair dali. Não estou preocupado com os ponteiros do relógio, nem com as pessoas que, passando por mim, me devem achar um louco sentado ali sozinho olhando para aquilo que eles devem considerar um vazio. Se calhar eles pensam que não tenho nada a fazer senão estar ali a apanhar frio. Mas eu estou em órbita, na minha órbita.

Estou a reinventar a história da Laurentina, mulher afogada nos anos oitenta, ou seja, levada para o fundo do mar, onde vive com o corpo coberto de algas. Estou ali pensando nela também. Talvez seja ela que me está a dar toda a paz das minhas lucubrações, quem sabe! E as pessoas devem estar a julgar-me um louco por estar ali apanhando este frio todo que nem sinto. Volto a olhar para o céu, onde Deus está instalado a controlar as emoções dos humanos.

Continuo a não ver o sol, escondido na bruma do espírito. Procuro a Deus e vejo-O na Sua plenitude através da beleza do mar. Reconforto-me, aliás é o próprio Jeová que me reconforta por intermédio dos anjos que me capturaram na rede de emalhar quando já estava no último passo para o precipício. Rio-me de todas as minhas derrotas, nesta interminável guerra que entretanto vou vencer, porque fui feito para avançar.

Continuo sozinho, sentado num dos bancos da marginal da cidade de Inhambane, absorto em mim, ou melhor, entregue à levitação. Estou nos derradeiros momentos, segundo indica o relógio dos meus espíritos, e eis que a vejo a vir, de longe. Não a conheço, não me recordo de a ter visto antes, mas, cada vez que ela se aproxima, dá-me a sensação de que vem ter comigo.

E ela também, como eu, está bem agasalhada, move-se como uma chita, pronta para tudo e, sendo assim, posso estar a correr o risco de ser devorado, ou levado ao colo. Está muito próxima e vejo nela um rosto flácido, triste. Mantém a passada e, quando chega perto de mim, passa e não diz nada.

Facebook
Twitter
LinkedIn
Pinterest

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Related Posts

error: Content is protected !!