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Pandza: O Cão Tinhoso

Do cão tinhoso só já me lembrava das “feridas penduradas” pelo corpo todo, e dos “olhos azuis que não tinham brilho nenhum”. Por isso não o reconheci à primeira. Parecia um cão qualquer quando atravessou a avenida por entre chiar de pneus, atabalhoado, esquivando as buzinadas irritadas dos motoristas. Nem mesmo o andar esquisito pelo excesso de magreza me ajudou a reconhecê-lo à distância. Rapidamente refugiou-se da agitação da avenida na ruela mais próxima. Andava encostado aos muros, pela sombra, e vinha na minha direcção. Evitava as pessoas, timidez que desenvolveu por ser constantemente rejeitado por causa das feridas nojentas, suponho.

Já sararam aquelas feridas, mas quando passou pelas vendedoras sentadas no passeio levou com um “suca cão!” dito em língua local para dar mais ênfase a zanga, e teve que se esmerar para que o corpo envelhecido conseguisse um daqueles arranques repenti nos de cão assustado. Quase lhe ouvi chocalhar os ossos.

Parou diante da enorme lata de lixo que me servia de balcão, uma das inúmeras sucursais espalhadas pela cidade, onde cumpro o meu expediente diário. Foi aí que o reconheci.

O corpo magro, os ossos à mostra, os olhos azuis que não ti nham brilho nenhum, as feridas, agora cicatrizes, pelo corpo todo, não restavam dúvidas, era ele!

– Cão Tinhoso! Sem se sobressaltar virou o pescoço e levantou a cabeça, com desconfiança. Olhou para mim sem interesse, com “olhos azuis que não tinham brilho nenhum”, esbugalhando as pálpebras descaídas com a idade. Espetou as orelhas com curiosidade. O rabo manteve-se encolhido, entre as pernas.

– Lembras-te de mim? – perguntei, emocionado.

– Sim, sim – fi ngiu por simpatia, e voltou à posição de farejador, rondando a lata de lixo.

Como poderia lembrar-se, décadas depois? Olhou desafiado para o limite gigante do recipiente, ensaiando derrubá- lo para poder revirar o lixo. Primeiro farejou o ar, depois cheirou o chão, contornou-a com o focinho atento, passou por mim sem medo, ignorando a minha presença, por fim conformou-se com os pedaços de lixo caídos pelo chão.

Diferente do que aconteceria com outro cão qualquer eu não me importaria de repartir o lixo com o Tinhoso. Pousei lentamente o saco de bugigangas que me pesava o ombro, sem ti rar os olhos de cima dele. Quis dizê-lo que eu, como todos os que na minha geração eram meninos, conheci-o nos bancos da escola.

Foi com a história dele que aprendemos a ler, a escrever, a interpretar o texto, as frases, o sujeito, o predicado, o complemento directo… e que a metáfora da sua morte foi muito útil para despertar a consciência dos moçambicanos…

– Mas não estavas morto? Não te mataram com aquela espingarda?

– Ah, isso é outra história. Esta é outra história. – respondeu sem parar de farejar.

Falava com poucas palavras, e agora com menos desconfiança.

– O que foi feito da Isaura? E do Ginho?

– Ah! Não sei. Ouvi dizer que se casaram, apesar da diferença de idades – Falava sem desviar o focinho do lixo que vasculhava – vivem na Catembe.

– Vou escrever sobre ti – disse-lhe, tomado por uma súbita emoção.

– Tu, escritor. A revirar lixo? Tu és moluene!

– Não, não sou moluene. Apenas recolho coisas recicláveis para revender. Garrafas velhas, sacos plásti cos, essas coisas. Sabe como é, literatura não dá dinheiro.

– Eu já fui escrito… estou morto – respondia sem olhar para mim

– Fizeste muito pelo país e precisas ser rescrito.

– Para quê? – Precisas ser relido nas escolas. Leitura silenciosa, leitura em voz alta, interpretação do texto, sujeito, predicado, complementos… entendes?

– Queres que volte a morrer? Queres que eu volte a senti r a dor da morte? – agora olhava-me fixamente nos olhos, e no pescoço a enorme cicatriz da corda que o levou arrastado ao calvário da sua morte luziu.

– O país precisa que tu morras. Precisamos voltar a matar o cão tinhoso… despertar consciências…

– Hm! E isto é um país? – Porque diz isso?

– Olha par ti – disse olhando-me de cima para baixo. Fiquei sem palavras. Descaiu as orelhas, no corpo magro, seguiu seu rumo incerto, com o rabo encolhido, bem no meio das pernas, magro, muito magro, com os ossos à mostra, como o país em que vivemos.

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